sexta-feira, 22 de abril de 2022

Amar tem isso

 


Não, não importa que os teus lábios pousem nos meus, como que breves, num sopro de despedida para os sonhos. É um gesto de amor, dizendo, sem palavras, eu estou aqui. Isso é tão suficiente, que fico plena, confiante com o que representa. Amar tem isso, fazer que o simples tenha sentido. A leveza e a graciosidade do voo da borboleta, não lhe tira o colorido e a beleza. Somos assim, amantes, fervorosamente sentindo nas pequenas coisas, a amplitude da totalidade.

 

dc


terça-feira, 12 de abril de 2022

Não lhe dói envelhecer

Não lhe dói envelhecer, dói-lhe que o amor tenha falhado, quando mais queria que ele acontecesse. Tanta foi a procura, tantos os erros cometidos, que se foi a oportunidade de ele ser, ou de saber, ou até se aperceber, se alguma vez ele rondou a sua porta. É possível que na ânsia de o encontrar, se lhe tenha ausentado a capacidade de discernir quando ele estava a acontecer. Houve momentos, que ele quis florescer, mas, uma ou outra razão, o fez recuar, e assim, foi perdida a oportunidade que merecia. Uma coisa que ele sabe, a sua força e o quanto ele nos abala. Em cada recuo, houve sempre uma dor fininha que se adentrou, tão fundo, que tornou cada vez mais difícil abrir a porta para ele entrar, mesmo tendo consciência do quanto seria desejado e bem-vindo.

 

dc


sábado, 2 de abril de 2022

senhores disto tudo

Olhei, vi as mãos, desenhadas a sangue, rasgadas pelo arame farpado dos senhores do mundo. Senti, como se na própria pele, a tortura e o campo limitado da vida humana, submetida às sevícias dos “senhores disto tudo” que se sentam na esplanada do mundo do sucesso contabilizando, investimentos em ferro fundido e bombas. Desconhecidos, eles, assumem normal caridade, nas realidades mundanas e nas vivências, onde a ética não tem vocabulário que a suporte. Eles são donos das palavras e das imagens, dos comeres, das vestimentas, e por fim, da vida das pessoas.
Por vezes, pergunto-me, até onde nos deixamos perder, suportando que haja quem se julgue dono do mundo. Já não sentimos a ausência dos afagos, do descanso e do rejuvenescer da natureza, absorvidos que estamos pelas diversas rotinas opressivas e limitativas. Emprego, casa, casa emprego, alimentar-se para sobreviver, olhos na TV, ou num qualquer computador, ou telemóvel, e um bocejar na atenção aos próprios filhos, esposa, ou familiares. As amizades, essas vão escasseando, não abunda tempo para a partilha, quando muito alguns minutos, escorridos no balcão de um qualquer bar, frente a uma cerveja que refresque, amenizando as dores da alma e a miséria social onde coabita. Na mulher, a que mais sofre, vislumbra-se nos olhos fundos e húmidos a dor das dificuldades, num sobreviver marcado pela ausência de amor e carregado pelas muitas vicissitudes de mulher, mãe e trabalhadora com direitos sonegados.
Somos povo? Talvez, se calhar, talvez mais formigas, servindo cigarras e suportando gafanhotos tiranetes oportunistas, cursados nas universidades do dinheiro fácil, arrivistas, especialistas de roubos que se não veem, donos de escravos modernos, na espera dos transhumanos futuros, mascarando-se humanos, sem limitação de tempo de trabalho, sem reivindicações, sem emoções, ou compromissos sociais e culturais.

Caminhamos para o abismo, e, perante o perigo, a solução, tem sido dar um passo em frente em direcção ao abismo, tal o amorfismo que nos tolhe e que nos prende, como uma corda com nó de marinheiro. Aceitamos ser prisioneiros, das falas, com voz de falsete, que hipnotizam e tem reforço e apoio nas “medias” corporativas, que nos provocam a ilusão de que o gato é uma lebre, que teremos acesso ao mundo dos sonhos e que “um dia se trabalharmos” muito havemos de lá chegar.

 

dc


quinta-feira, 17 de março de 2022

A natureza das coisas


Vieste em meu sono, desesperar meus sentidos, atazanar meus remorsos e descuidar minha vida. Tanto tempo descansado, paulatinamente vivendo, mesmo com mágoa ainda nas veias e pensamento, mas acalentando sossegos, que agora mais necessito, do que agitação de descaminho. Longos foram os dias, inalando cada brisa, sondando teu cheiro, e de porta encostada, na espera da tua entrada. Levanto os braços na matinal preguiça do nascer do dia, como se fosse súplica, para não te abeirares dos meus sonhos, para que não se transformem em insónia de espera nunca mais realizável.

 

dc

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Mais do que um corpo

Ao passar, olhou-a, ficou preso à sua imagem, quase dominada pelo preto e branco. De sedutora estética, tinha o arreganho da luta nos seus braços. Despida de enfeites, não por simplicidade, antes por ser seu destino, desnudar-se para se renovar. A realidade visível escondia a vibração que dentro de si, existia. Feito Deus, ele deu-lhe a vida que se escondia, mesmo quando perdida das suas vestes e sujeita ao agreste vento gelado e chuva. A esperança restaurada, de quem a observa e de quem sempre espera a renovação da sua própria vida.

 

dc

 


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Sem resposta

Perguntas-me como eu estou, e eu não sei responder-te. Estou em fuga de mim, sem me aperceber do que fazer, vivendo cada dia o seu acontecer. No dia a dia, e suas rotinas, incomodam-me as alterações, já não tenho pachorra, para viver de stresse ou pressões. Cada exigência exterior ao que me disponho, me aborrece. É comum trazer comigo, um ou dois livros como companhia, são o que de melhor tenho para me ocupar enquanto a espera me é imposta. Dois diferentes, para que se adequem ao estado de espírito, ao lugar e ao momento. E de facto eu leio, mas nem sempre, sem saber porquê, o que leio fica retido, para dele dizer, o que se pode dizer de um livro. Na maioria das vezes efabulo sobre aquilo que leio e perco-me sem receio, com os olhos lá longe onde não se fazem perguntas, nem se esperam respostas. Como agora mesmo, a luz, cor e som, chegam com as conversas que circulam entre as mesas da esplanada, e a confusão é tal, que não me retenho em nada. Nem no livro que leio, nem na conversa de premeio, e assim, o tempo decorre e mais um dia morre, sem espalhafato, na ninhês que se vai repetindo.
A pergunta mantém-se e a estória não muda nada. Estou em fuga …

 

dc


segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

O meu mundo é o dos silêncios..



... neles, só os olhos se agitam, mesmo quando fechados. Olham o de fora, imaginam o de dentro. Em certos momentos, estou tão preso ao silêncio, que os olhos, mesmo abertos, estão vazios para quem desconhece o entendimento. Voam mais além da linha do horizonte, vagueiam pelo céu azul, mesmo que outras cores vivam e continuem a ajudar a definir as formas no desenho dos objectos. Os pensamentos fluem, o ruído é imaginação pura. O matraquear das palavras e das falas se fazem num diálogo surdo, calmo sem a agitação do gesto. Os cheiros são privilegiados, nos seus diferentes matizes, alimentam-se da memória que traz o presente que me rodeia, mas também das ausências, sobretudo essas, cujo cheiro ficou ligado a vivências, que pareciam esquecidas e de repente estão ali tão nítidas. Sinto um arrepio percorrendo o corpo, adensando o silêncio, afastando-me cada vez da realidade presente. Talvez seja isso o motivo deste silêncio, que reservo, longe de quem não entende. Sobreviver, ao vazio para o qual vamos caminhado, no correr do calendário, em que os dias deixam de ter importância, somente o momento, a cada segundo é a vivência intensa do possível. O meu tempo deixou de ser um lugar cronometrado por interesses alheios.

dc