quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Tarde, sempre tarde



Apercebeu-se, no virar da esquina, quão precário é o tempo existir. Sentiu um arrepio, no corpo, sentiu a dor das horas perdidas sem substância. O encantamento desfez-se, ficaram somente resíduos de escassos momentos em que valeu a pena. Faz medo, o lado obscuro do outro eu, que sempre esteve na sombra. Não chegarão, no fim que se avizinha, a justificação, de algumas indecisões, ou a tentativa frustrada de recuperar o tanto que se não fez. Seremos sempre um corpo abandonado, debaixo da cama de flores com que nos despedimos.

dc


sábado, 19 de agosto de 2023

O entardecer é um suspiro

 

O entardecer é um suspiro. Corro para ver o Sol, antes de ele partir para outro lugar. Depois fico-me, sentado, usufruindo o bater das vagas no lençol de areia. Tudo o mais é silêncio. As gaivotas já se despediram do dia, e, algumas, estão em grupo pousadas no areal, talvez preparando o sono, quem sabe. Só na minha cabeça, as engrenagens, da vida activam, os diferentes sentidos. As minhas mãos, vivenciam o toque da areia, que escorre entre os dedos; os meus olhos, procuram gravar as cores que marcam o céu e desenham o horizonte; o meu coração baixa as batidas, e a respiração torna-se compassada, lenta absorvendo todos os odores que me chegam. A emoção toma todo o meu ser e uma paz estranha, mas deliciosa, se apodera de mim, sem permissão para interrupções. O mar, está ali, com a sua canção de embalar, para que tudo esteja certo, para que tudo dê certo. Tudo adentra, o frio não existe, a angústia se foi, a serenidade se implanta, o presente torna-se intenso, único, autêntico.

dc


sexta-feira, 18 de agosto de 2023

com outros olhos...

 

Gostaria que me visse com outros olhos, que sem temer, se aproximasse, que desse um passo, para abrir a porta do conhecimento de si. Que proporcionasse um diálogo, de olhos nos olhos, sem restrições e preconceitos. Que quisesse descobrir o que os meus olhos dizem, quem sou e o quanto posso partilhar. Até seria bem possível, que servisse de gazua para abrir a minha caixa de emoções, há muito fechada, dela trouxesse à luz do dia algo de diferente, menos comum, mas real e humano suficiente. Com erros de percurso, com vitórias reduzidas, mas de algum modo vividas e duramente conquistadas, com força capaz, para que formado o par, contribuísse para derrubar obstáculos, libertar sentimentos, surfar na alegria e na felicidade possível. Nada se conquista, sem derrubar o medo de errar, superar as incertezas e confiar nas forças que nos suportam, acreditando que todos os dias serão diferentes, com tempestade e bonança, com frio e calor, com tristeza e alegria, mas, sempre com confiança, de que juntos somos mais fortes, para superar e alimentar o amor, que o sorriso ilumina, os olhos denunciam e o beijo acalenta.

 

dc


terça-feira, 15 de agosto de 2023

Upss...


Uma da manhã, o ruído acorda-me. Em apartamentos de férias, de gente pouco abastada, as paredes são de papelão e os ruídos acontecem como se fossem dentro do nosso espaço. Ouvia-se a água a correr de um chuveiro, e todos aqueles ruídos, que alguém habitualmente faz quando toma banho. Um pouco mais tarde o ruído da escova de dentes e água do lavatório a correr…

Ela entrou, com uma blusa preta e uma saia, cor branca, a desenhar-lhe o corpo, cabelo aloirado, com madeixas de cor clara e escura, preso na zona da nuca. Olhos verde-claro, boca carnuda, orelhas com brincos simples. Educadamente, levanto-me para puxar a cadeira onde para se sentar à mesa comigo. Uma ligeira vénia surgiu de si como agradecimento. Após a conversa, plena de lugares-comuns, entrecortados com sorrisos e gargalhadas, foi evoluindo aumentando a intimidade, até terminar com um beijo, ousado que ela se permitiu sobre a minha boca. A boca húmida, deliciosa, agradável, macia como veludo, fofa, adentrando mil emoções em mim. De seguida levantou-se, pegou na pequena bolsa e sugeriu ir maquilhar-se. Muito tempo depois, não tendo regressado, fui saber da razão da sua ausência. Procurei em todo o espaço, e não a encontrei, resolvi com calma, perguntar ao empregado do restaurante se tinha visto a senhora, que estava comigo. Fiquei a saber que afinal ela tinha saído, segundo parece de forma apressada, sem, como diz a estória, tivesse deixado um pequeno adereço que me fizesse encontrá-la. Umas semanas mais tarde, quando atravessava a ponte que une as duas cidades, vejo-a correndo sobre o tabuleiro superior da ponte, com os cabelos soltos, vestindo, já não roupa de férias, mas um casaco de pele, com lã branca a sair da gola e dos punhos. Parecia perseguir algo. Um grupo de pessoas, parado no passeio, travou-lhe a marcha e após conversa agitada com mãos e braços gesticulando, retomou de novo a correria, até que mais à frente, encontrou uma multidão de pessoas que se manifestavam, que a impediu prosseguir. Enquanto isso, eu corria no seu encalço e observava tudo de longe, assim vi o seu ar desanimado, como se algo tivesse impedido de atingir o seu objectivo. Levantou os olhos, ao ver-me aproximar-me, correu na minha direcção e disse-me: não preciso correr mais! Atirou-se nos meus abraços e deixou-se aconchegar, como se tivesse encontrado o seu lugar. Olhou-me, com os seus olhos, cor de mar, cheios de lágrimas, beijou-me e disse: eras tu quem eu procurava!

O apartamento de férias, dava para um corredor exterior do lado da rua, a sua entrada, ficava no lado esquerdo e no lado oposto, no fim do corredor, ficavam as escadas de saída para rua. Ao sair para a minha caminhada matinal, vejo o perfil duma figura de mulher, a sair da porta do apartamento pegado ao meu, só via, cabelo com madeixas, saia comprida e blusa preta. Instintivamente paro. Havia algo nela que reconhecia, rodou o corpo olhou-me e o espanto tomou-me…e despertei.

 

dc


sábado, 22 de julho de 2023

Volta logo, fazes-me falta!



Acordei abraçando a outra almofada, onde a sua cabeça, por norma, repousa. Um sentimento se instalou; de ausência, de falta, mais profundo que o corpo físico. Uma saudade que resta, uma memória que não se apaga. O próprio colchão, tem a marca do teu corpo, e do teu perfume, esse, parece que impregnou tudo o que existe no quarto, ou será que ele resta em mim, na memória? Não sei, tudo se torna estranho. Quando partes, mesmo agora, que saíste temporariamente, instala-se um longo silêncio, mas pior, o vazio de ti. Volta logo, fazes-me falta.

 

dc


quinta-feira, 20 de julho de 2023

Um Modo de L(v)er

Senti a tentação de me deixar voar na transparência. Poderia cair na tentação de fazer uma sinopse do conteúdo do livro, mas preferi que fosse antes, uma mistura de sentimentos e ideias que me ficaram na minha mente. Podia falar da água que cai, num prédio diferente, na piscina casual, como local de encontro de todos os que nele moram e na frescura ali procurada, do carteiro apeado, que desbrava cartas para justificar a função, por satisfação, esperando entendimento daqueles que o rodeiam e dos responsáveis, que a ele, deviam atender.
Importante, é que me chegou com as vozes negras, carregadas de transparências, do linguarejar do seu povo. Atingiu-me a alma de modo fulminante, no seu gotejar da sabedoria das suas gentes, com as suas estórias e seus pensares. Fez-se presente, em guerras já passadas que deixaram nódoas, que nem a lixívia do tempo, consegue apagar. Tudo vozes acontecidas, na fantasia do real que se atreveu deslumbrar. Denúncias, ou achegas de clarificar promessas falecidas, de quem, rapidamente se esqueceu, do ainda ontem escravo, agora exercendo poderes e gestos, a espingardar decisões de imitação barata e sem sentido. Saiu um usurpador e logo aparecem, outros e variados oportunistas, etilizados, colando-se aos ideais de libertação, sujando tudo à sua passagem, com os seus punhos de renda, malabarismos de má consciência. Mas há sempre alguém, de sangue não contaminado, que consegue trazer do povo e das suas experiências e transparências, as suas memórias ancestrais, a beleza da ligação à terra e o fluir da vida ainda longe dos vícios citadinos.

 

dc

 


terça-feira, 18 de julho de 2023

DEIXAR IR

 

As raízes que me prendem, são as memórias tardias e os laços com a terra de nascimento. Pouco mais resta, que me mova a emoção e me traga à superfície, nem para respirar depois de uma apneia, forçada, para encontrar o silêncio no meio deste mundo caótico. Assim fujo de qualquer contacto mais físico, mais terno, mais humano. A intenção é deixar ir, sem a percepção dos acontecimentos, sem o stresse do tempo. Como se tivesse calçado os chinelos velhos de imensas caminhadas, que sabem o caminho, mas estão gastos, pela incerteza e desconfiança. É um “arrumar das botas”, fixando o olhar e o pensamento nas leis da natureza, para que ficar mais perto do estado límbico, com serenidade e em paz.

 

dc