sexta-feira, 19 de julho de 2024

Férias. Até ao lavar dos cestos..



Amanhece-me o corpo com o calor. A preguiça que a noite trouxe, contamina o cérebro enublado, trôpego de gestos, sento-me na borda da cama, absorto tentando encontrar o caminho. Primeiro, saber do lugar onde me encontro, depois encontrar a coragem para me mexer e erguer o corpo. Obra difícil. Sabe bem, estar assim, olhando  os pés sobre o tapete, ainda sem os chinelos, que onde ajudar no caminho. É interessante como os dedos dos pés, nesta altura do dia, são motivo de atracção, mexemos um e outro como se quiséssemos através deles chegar ao cérebro emaranhado da noite que findou. Nem reparamos, se os pés são feios ou bonitos, mexemo-los simplesmente como se estivéssemos a tocar piano com eles. O vizinho do apartamento ao lado bate a porta dentro de casa, e as paredes, de cartão, fazem nos crer que está a acontecer na nossa cabeça. Fico desperto e começo a insultá-lo baixinho: como é que um cabrão destes, acorda tão cedo em plenas férias, e entra no mundo dos outros com esta bestialidade. Na verdade tenho de agradecer-lhe, deu-me o gás necessário para conseguir levantar-me e lentamente descer as escadas a procurar solução para a modorra que me trava os gestos. Coragem, penso eu, o dia está por tua conta, só tens que vestir uma coisa qualquer, umas chanatas nos pés e ir para a cozinha preparar o pequeno-almoço, depois, lá vais tu para a praia, tomar o teu sol, meter esse corpinho na água do mar, fria o suficiente, que parece que estás no Ártico. Regressas à toalha de banho, anteriormente estendida, que te espera, e começas a tua rotina de leitura, intercalada com um fechar de olhos, malicioso, que engana quem passa. Arregalas os olhos de vez em quando, com os passantes, que de calções ou biquini se vão mostrando e voltas à fluidez da pasmaceira da praia. Ler, fechar os olhos, ver quem passa, ler fechar os olhos e ver quem passa. Intervalo para molhar o corpo, que o sol é muito forte e voltar a pôr o protector(?) solar. Assim vai passando este ramerrame do ínicio das férias. Entretanto, lá chegará a hora ir almoçar, acompanhada de conversa ligeira e algumas vezes divertida, abrindo a porta à respectiva sesta, e por aí vai o correr do dia. Férias são férias. Até no lavar dos cestos é vindima e mais nada.

 

dc

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Diálogo invisível

 

Espantado com a claridade do seu olhar, transparente, puro. Um olhar que se adentra no meu, fixando-me na sua infinitude. Fala-me de amor sem que as palavras se soltem, mas ouço-a num sussurro dentro de mim, é um diálogo invisível, que só os dois entendemos. Tudo acontece, como se fora previsto, sem sobressaltos. Os corpos movimentam-se, convergindo, com um fio condutor que nos hipnotiza. Quando perto, o seu perfume sobressai, e o calor do seu corpo, faz-se sentir no aflorar da ponta dos dedos que se tocam, milésimos de segundos antes de as mãos se apertarem, e os corpos se enlaçarem na linguagem frenética do espanto. Movidos por certezas, que não sabemos possuir, que se afirmam nas letras que compõem esse sentimento, que alimenta a alma dos poetas, é tema de filmes, enriquece performances em diferentes palcos da arte e da vida. Somos possuídos por uma espécie de montanha-russa de emoções. É incrível a abstração pura do que nos envolve, ambos deitados num colchão de nuvens, inexplicável ao comum dos mortais.
Tanto tempo passado desde que acontecera. Quase em apneia, acordo assustado, procuro os teus olhos, e encontro a almofada vazia. Já não estás ali como eu me habituara, nos muitos acordares. Partiste com serenidade, no seio da dor que te magoava o corpo. Agora, só cheiros vários e objectos sinalizam a tua passagem. Encolho-me sobre o meu próprio corpo. Encosto os joelhos no peito. As lágrimas correm, afinal foi tão curto o nosso tempo de viver. Dizem que o Universo, planeia tudo, mas porquê ser tão frio e calculista ao atribuir-nos um tempo de partir, quando queremos ficar?

 

dc


terça-feira, 9 de julho de 2024

Abstração


Fala-me, eu escuto, mesmo que não conheça a tua língua, estou capaz de te entender. Tu falas por ti, e por mim, nesses gestos vagos de nada dizeres. São desenhos abstratos, feitos no ar, nessa imensa lousa onde existimos. Como explicar aos outros, que a nossa linguagem é subliminar, que só olhamos os movimentos, a agitação e clareza do olhar, o mover dos lábios mudos, dizendo para lá do espelho que nos envolve. A energia que se liberta, comunica e desperta a consciência daquilo que é intrínseco de cada um. As palavras não fazem sentido naquele permanecer, alguns sons, talvez, alguns cheiros, certamente. Ligados pela abstração de um sentimento, que não sabemos explicar, restamos sentados, próximos, marcando o compasso da respiração surda, serena no peito. As horas passam, o dia nasce e morre como se não existissem limites. Abrimos uma porta, que não sabemos onde vai dar, nem se pode ser fechada. E pouco importa que assim seja, nós somos a presença que queremos. Um para o outro, escrevendo o diário, com tinta transparente, em letras de uma língua desconhecida.

dc

segunda-feira, 8 de julho de 2024

A voz que me encanta

Sydnie Christmas um talento cantando

A voz me encanta, a boca desenha um sorriso, lindo, intraduzível. Os olhos sorriem e brilham, acompanhando os sons saídos dos lábios. Com a simplicidade, como se apresenta, assim o poema sai, fluindo na sua voz quente e límpida. Sinto que me afasto, torno-me etéreo naquela escuta. O mundo, é todo, uma nuvem, que me conduz para lugares desconhecidos. Sentimentos vários, nunca surgidos, se adentram e me arrepiam a pele. Afinal a arte, estética, a voz, a sua figura, nos arrebatam deixando-nos suspensos da realidade material. Sem adivinhar o porquê, enamoro-me do que vejo, ouço e aprecio. Fantástico quando alguém canta e tem presença, e a voz, que nos encanta.

dc

 

 https://www.youtube.com/watch?v=pjyy4tYZFDc

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Insónia


Tem noites, como agora, em que acordo sobressaltado, como se tudo já tivesse dormido. Fico ensimesmado procurando a razão, de tal acontecer, pois, de facto gostaria de voltar a adormecer. No entanto, o sono não volta e a mente fica solta, na procura do que fazer. Se contar carneiros não me faz entorpecer e os olhos fechar, continuo o divagar, à volta de pensamentos estranhos, ou preocupares tamanhos, tornado-se um inferno, pior que noite fria de inverno. Tento ler para voltar a adormecer. Escolho um livro desinteressante(?), mas é difícil, ele tem tantas palavras e frases construidas que ao raciocínio dão asas, e me levam a voar, neste continuar sem saber, se estou a pensar ou a sonhar, não entendendo se de olhos fechados, ou abertos, e os sentidos despertos. Há quem lhe chame Insónia, mas eu tenho dúvidas, não conheço tal “pessoa”, que ao sono traga tanta cerimónia. Resolvo debitar palavras seguidas, sem fio condutor que revele saber, e acabo por resolver, que tenho de parar, não vá acertar no que estou a dizer, e fiquem a saber que tenho dificuldade em adormecer.
A noite já vai alta e fico em silêncio, aproveitando o vazio que se instala, olhando os livros nas estantes da sala, pensando, pensando, tentando tomar consciência da proveniência deste acontecer, sem chegar a conclusão alguma. Possivelmente, como tem sido costume nos últimos tempos, acordarei sentado no sofá, com dores em todo o corpo, de mau humor e desde logo a tentar resolver, os muitos problemas que já fazem parte da rotina, de quem procura sobreviver no marasmo social e politiqueiro deste país governado, pelos desgovernados eleitos. Ah, será isto que provoca a tal insónia?


dc