sábado, 30 de março de 2019

Preliminares



Molhada se agita
Ponto na ponta
Na gruta infinita
Vezes sem conta

Construindo círculos
Ou procurando mais fundo
São poemas e versículos
Na boca do fim do mundo

Molha-se o molhado
Para começar
Goza-se o gozado
Sem querer acabar

O rio desce da nascente
Até à foz do linguarejar
É cada vez mais urgente
Algo mais nesse lugar

No meio está a virtude
Que o prazer entontece
Sem distância ou latitude
Todo ele se engrandece

Misturam-se as águas
O rio chega à foz
Acabam-se as mágoas
Falam numa só voz.

dc







quarta-feira, 27 de março de 2019

Todo o espaço é caminho



Só, agarro-me a este espaço onde o silêncio me permite observar o mundo com distância necessária ao juízo da realidade.

Aqui permito-me sonhar, sem sentir o ruído e o cheiro nauseante da cidade e sua intensidade.

Leio e nas palavras o conforto de não estagnar no amorfismo da linguagem que as vozes correntes trazem.

Não procuro estradas para viajar todo o espaço é caminho.

Neste lugar é meu corpo um objecto de paragem, sem perturbação dos sentidos, e viajo com as aves tão próximas que lhe tomo as asas.

Penso-me livre e capaz de voar no céu infinito que se me depara, mesmo quando pretendem que as grades me prendam.

dc




segunda-feira, 25 de março de 2019

Transparência



Entre o sonho e a realidade, está a transparência do que eu sou. Nada mais do que isso, para que me entendas, não tens mais de que perceber a leveza do tule, a maciez da seda, o corta e cose das palavras, e saber qual a linha resistente com que se tecem e unem os tecidos dos dias.
Sobre a mão deslizando na neblina ressoada no espelho, surgem pedaços de mim, e neles verás surgir um olhar que te ama, um corpo que te espera e um elevar dos braços ao encontro do teu céu. É o primeiro esboço de um desenho enorme que iremos construir.
Quero-te bem, e muito para além das palavras que aqui deixo, a realidade será de certeza mais surpreendente, tal como as flores enchem as árvores na Primavera.



dc

quarta-feira, 20 de março de 2019

O primeiro encontro



Não foi uma estória de Carnaval ou uma partida no dia dos enganos, aconteceu e não trouxe dúvidas, ambos sem surpresas, um perante o outro, ela extrovertida ele contemplativo. Olhos verdes atrevidos, cabelo curto loiro, boca cheia e um sorriso permanente, entrelaçando as palavras que nervosamente saiam da boca. O café tomado junto ao mar, no bar de praia, foi o prelúdio de uma noite que viria a ser longa. O fim de tarde com o céu cinzento, trazia-lhe frio aos ombros seminus, que ele gentilmente cobriu com o seu casaco de malha, e a conversa de circunstância de pequenas revelações de como afinal chegaram ambos até ali.
Saíram continuando a conversa até ao carro. O sorriso algo nervoso atingia os dois. Nunca tinham pensado na possibilidade, de que um dia se iriam ver face a face. Um beijo dado com todo o corpo e alma eliminou reservas.
Jantaram em casa, comida simples e bom vinho tinto. Entre o degustar o que na mesa havia, beijos molhados e olhos brilhantes iam ajudando a quebrar alguma reserva que poderia existir. Depois, depois não vale a pena contar, ficou na sua intimidade entre lençóis, como se de sobremesa requintada se tratasse, em restaurante de luxo do qual não queremos fazer publicidade. Bom demais para que pudesse ser desvendado, seria sempre menos do que foi sentido.
Na verdade, se entenderam por largo tempo e as palavras que os amarraram entre si, se mantiveram nos factos nos gestos nos dias vividos durante largos anos.

dc

segunda-feira, 18 de março de 2019

Olhava as fotos...


.... e prendia-se nos pequenos pormenores da sua figura. Não eram os traços de beleza que chamavam a sua atenção, sim os gestos que traziam à memória, a superfície dos seus dedos que falavam da pele, o movimento dos lábios nas frases saindo-lhe da boca, os olhos brilhando, os trejeitos do rosto, as mãos que se agitavam no dialogar. Numa aparecia um sorriso vincado, na outra um olhar profundo, o corpo em cabriola, a blusa voando na brisa, as calças rasgadas no joelho, os braços se levantando deixando o peito desenhado, as orelhas bem delineadas e ornamentadas. Algumas havia em que da palma da mão soprava um beijo, em outras, uma careta e um sorriso maroto, outras até com olhar e boca, vincados de zanga na pose forçada, tudo imagens desafiando a objectiva que na sua frente a observava.
A nostalgia, surge num repente, trazendo com ela o desconforto e pensamentos contraditórios. Qual a razão por que guardámos imagens que sabemos nos trazem memórias, que entristecem pela ausência de quem nelas aparece, ou, porque com elas vem colada a dor. Muitas delas representam efectivamente momentos, que quando foram captados, se pensavam para uma estória que ficaria para sempre e o registo fazia parte, mas depois, se não resultou, por que razão não as cortamos ou colocamos no caixote do lixo? Talvez sejam importantes como registo, não para nós próprios, mas para que outros, um dia, façam a história de forma documentada. Centenas de imagens relatando acontecimentos, sentimentos, estados de espírito, lugares, em resumo, vivências, mas já deixaram de fazer sentido nas nossas vidas do agora. Se assim é, melhor será deixá-las no baú “até que a morte nos separe”.

dc


sexta-feira, 15 de março de 2019

Custava-lhe envelhecer




Custava-lhe muito o envelhecer. Olhava-se no espelho e as rugas marcavam o seu anoitecer. Não adiantava se sentia vivo por dentro, se sorria e caminhava sentindo o vento, se a força nas pernas não lhe faltava, se o coração ainda batia por aquela que o entontecia e que tanto amava. Na verdade, envelhecia, inexorável a passagem do tempo. No rosto as rugas marcam como trilhos, o mapa duma existência, cada uma com a sua memória, mas não falam da riqueza das terras férteis, que dentro si ainda existem para cultivar as emoções, os desejos, os projectos, ou, as rotas do sangue quente que ainda circulam intensamente com a vontade e coragem de viver a vida. Por isso, não havia razão para que a idade o intimidasse, a perspectiva de vida, o tempo que ela dura e a sua qualidade, são tão relativas como muitas outras coisas.
Importante é ter consciência de que o amor acontece sem que se dimensione nenhum desses factores, tão comuns que a sociedade tem por hábito rotular. Nem quando o corpo já não corresponde à sua vontade, se deve desistir, há sempre alguma forma de dar asas ao pensamento e ao sentimento que nos percorre desde o interior, fundo, de nós próprios.

dc