Olhamos o espelho, vendo para
além de nós. O rosto é somente a aparência onde nos fixamos estáticos, enquanto
adentramos, nos nossos pensamentos e raciocínios. Não raro acontece acordarmos
dessa letargia, com uma voz que chega lá de longe, como um eco, para nos dizer que
estamos com bom aspecto, ou atrasados para um qualquer compromisso da nossa rotina.
Penteamos o cabelo, passamos creme nas faces, ou borrifamos um pouco de água de
colónia e de seguida uma vista de olhos à restante decoração de que nos
vestimos para parecermos pessoas. Aquele momento fugaz de auto-observação em
que nos detivemos, olhando o reflexo do rosto que não vimos, surgirá mais tarde,
fazendo parte das nossas interrogações. Será regurgitado para a luz do dia,
vivenciado como um filme do qual tentamos perceber as razões e as dúvidas que
ocorrem da sua ficção. Se não observamos, atentos, os traços da face, não é
possível que tenham sido as rugas, marcando o percurso dos aniversários
decorridos, ou os cabelos brancos como número de identidade, porquê da razão do
olhar invisível, abstracto, como que suspenso no tempo? Será uma defesa do
nosso cérebro, ou a necessidade de deixar as rotinas? O que se passa em nós,
que cada vez mais, com o evoluir dos anos, vamos tendo esta espécie de brancas temporárias,
em que nos afastamos do que nos rodeia e nos deixamos tomar pela meditação,
para além do lugar de estar? Talvez seja a ameaça à vida que hoje sentimos,
este terror que nos colocam, da quarentena para a calamidade, numa maldade
insana de nos fazer contar os passos, alargar as distâncias, e temer o respirar
da vida, na crença de que só assim podemos existir, temendo, que nos coloca
dentro da gaiola, sem a liberdade do voo, que nos faz perder o siso, nesse olhar
que vai para além do espelho onde nada vemos.
dc