sexta-feira, 3 de julho de 2020

Além do espelho


Olhamos o espelho, vendo para além de nós. O rosto é somente a aparência onde nos fixamos estáticos, enquanto adentramos, nos nossos pensamentos e raciocínios. Não raro acontece acordarmos dessa letargia, com uma voz que chega lá de longe, como um eco, para nos dizer que estamos com bom aspecto, ou atrasados para um qualquer compromisso da nossa rotina. Penteamos o cabelo, passamos creme nas faces, ou borrifamos um pouco de água de colónia e de seguida uma vista de olhos à restante decoração de que nos vestimos para parecermos pessoas. Aquele momento fugaz de auto-observação em que nos detivemos, olhando o reflexo do rosto que não vimos, surgirá mais tarde, fazendo parte das nossas interrogações. Será regurgitado para a luz do dia, vivenciado como um filme do qual tentamos perceber as razões e as dúvidas que ocorrem da sua ficção. Se não observamos, atentos, os traços da face, não é possível que tenham sido as rugas, marcando o percurso dos aniversários decorridos, ou os cabelos brancos como número de identidade, porquê da razão do olhar invisível, abstracto, como que suspenso no tempo? Será uma defesa do nosso cérebro, ou a necessidade de deixar as rotinas? O que se passa em nós, que cada vez mais, com o evoluir dos anos, vamos tendo esta espécie de brancas temporárias, em que nos afastamos do que nos rodeia e nos deixamos tomar pela meditação, para além do lugar de estar? Talvez seja a ameaça à vida que hoje sentimos, este terror que nos colocam, da quarentena para a calamidade, numa maldade insana de nos fazer contar os passos, alargar as distâncias, e temer o respirar da vida, na crença de que só assim podemos existir, temendo, que nos coloca dentro da gaiola, sem a liberdade do voo, que nos faz perder o siso, nesse olhar que vai para além do espelho onde nada vemos.

dc

domingo, 28 de junho de 2020

Nada como agradecer


Não sinto o aniversário como uma datação do corpo, antes como glorificação de vida.
A todos os que se lembraram o meu eterno agradecimento;
A todos os que se esqueceram (como eu me esqueço muitas vezes) o meu perdão porque não lhes sinto maldade;
A todos os que ignoraram um abraço de agradecimento, são eles que me ajudam a perceber quão importantes são todos os outros.
Afinal todos têm um espaço no desenho que estrutura a minha vida.
DCC

PS: este texto foi publicado em 1917, mantém-se o seu conteúdo, para todo o sempre


quarta-feira, 24 de junho de 2020

Sem título


É possível pensar, que o amar, romântico, é como uma obra de arte, que acontece no meio de diversas experiências falhadas, entre esboços e ideias não concretizadas, na verdade, surgindo dum caldo de muitas vivências e sentimentos, dum cúmulo transformado em inspiração que sobressai em momento não previsto e se disponibiliza para o acontecimento. Do mesmo modo, haverá quem pense, e acredite, que o amor seja intuído pelo que dentro de nós acontece, quando pensado e imaginado vezes sem conta, sem percepção de que o fazemos, até que ele surja como se um click se desse. Seja qual for a versão, a sua descoberta, ou melhor, o seu acontecimento, traz consigo a capacidade, da tolerância para a repetição dos dias e dos hábitos, para o deixar-se ir livremente ao sabor desse sentimento, da vida de um e de outro, de um para o outro, sem tempo limitado. Assim sendo, será um sentimento que não morre pelas dificuldades, pela ausência, pela falta do fio condutor da vida em comum, quando muito, se afasta da intensidade e muda de forma? Uma coisa é certa, ainda não aprendemos a enfrentar a dor da sua perda, mesmo tendo a consciência, algumas vezes, que é o melhor(?) para ambas as partes.

dc

terça-feira, 23 de junho de 2020

A espera é longa


A espera é longa a indecisão nela vem colada torna a razão desequilibrada e a espera acentuada.

Esperar significando tempo, faz a esperança de realizar perder-se do sentimento.


Não quero esperar nem dando tempo, nem esperar de esperançar, perde-se até o momento de recomeçar.

Esperei como sempre espero, já não sei, para ser sincero, se é porque quero, ou por não saber o que espero.

dc


domingo, 21 de junho de 2020

Domingo empanicado


Fechados, isolados, com o cutelo sobre o pescoço, vamos sendo intimidados com o medo da morte ao virar da esquina. Permanecemos, egoístas, defendendo o nosso castelo, mascarámo-nos, fugimos de quem gostamos, afastámo-nos de encontros em passeios, e das risadas em comum. Ouvimos as notícias, caindo como se fosse chuva, algumas delas contraditórias, e assim as pessoas não sabem a quantas andam. Vamos ficando calados, ou falando exageradamente do que desconhecemos e aceitamos por obediência, não por consciência. Ontem quarentena, mal conversada, hoje calamidade indeterminada. Empanicados, sujeitos à voz de quem manda e pouco esclarece, cortam-nos as pernas à esperança, ou nos dão como saída um futuro onde eles são donos e senhores, governando em nome da segurança, pela troca da liberdade. Há que abrir bem os olhos, dimensionando até onde os deixamos ir. Neste mundo “moderno”, somos telecomandados nas decisões, e aceitamos ser policias de possíveis servidões.

dc

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Sou a sombra do que nunca fui.

A frase, saiu sem pensar, ganhou expressão por si só. O clima está incerto, faz sol, ou chove, há vento, ou uma ligeira brisa, o calor é imenso, no virar da esquina o frio segue. Tudo muda na incerteza dos minutos, dos gostos e desgostos, da mente perturbada, congelada, que não pensa, são os dedos por si sós que se movem, ganham vida própria. Serão comandados pelo subconsciente? Responderão directamente ao coração, ou não querem saber de nada disso? Confuso? Não sei, os dedos continuam carregando nas teclas, umas vezes depressa outras devagar, sempre marcando letras que fazem as palavras, os raciocínios e continuo sem pensar da razão do acontecer. Como aquele beijo que damos sem pensar, o abraço que damos sem explicar, o restar em vez de partir, a respiração que funciona mesmo sem pensar.
As palavras na sua suavidade, ou intensidade, por vezes surgem à frente, saem da boca e abstraem-se da pessoa que as solta, tantas vezes tem doçura e mel, outras tantas vinagre e sal, em ambas as situações são tempero de vivências, são reflexos de personalidade expressando de que massa somos feitos. Lá chegarão as alturas, em que será necessário, escolher as palavras com cuidado, com a precisão necessária, em razão do momento. Até lá deixarei que elas sejam livres e se façam sentir. Que as leia quem quiser, como quiser, e como eu, não pense demasiado na sua adequação. Sirvam-se delas gozem a sua sonoridade, fiquem-se pelo gozo da repetição ao serem pronunciadas, fiquem com as que gostam no vosso acerbo, e disparatem insultando quem acaba de se pronunciar, escrevendo tudo isto.

dc


domingo, 14 de junho de 2020

Basta ser domingo



Tudo se mantém entre o sonho e o pesadelo da realidade. Que importa quantos anos passem, quantas as caminhadas feitas sem destino, quantas as manhãs frias pela ausência, quantas noites escuras com breu de olhos abertos esperando sonos, quantos os silêncios com o olhar perdido nas paredes carregadas de livros e pinturas, quantas as flores cortadas ou árvores podadas? Nada. Tudo isso são coisas que não arredam o que sente dentro de si. Ficaram os cheiros, a pele tatuada pelo toque dos seus dedos e doçura dos seus beijos, o amor feito sem pressa, as idas e vindas quebrando tempo e distância trazendo o sorriso e brilho aos olhos; a paragem do tempo, sentados na beira rio junto à foz, olhando o morrer do dia na linha do mar. São memórias em tinta invisível que facilmente se revelam, desse mundo submerso entre o sonho e a realidade, como o facto de ser domingo.

A data não está marcada, os dois ainda não têm a sabedoria da natureza na rotina das estações do ano, ou do ciclo das marés. Um dia irá acontecer, mais cedo do que tarde, e nessa altura se saberá qual o fio condutor que mantém os espíritos ligados a essa chamada, estória de amor.


dc