Fala-me,
eu escuto, mesmo que não conheça a tua língua, estou capaz de te entender. Tu
falas por ti, e por mim, nesses gestos vagos de nada dizeres. São desenhos
abstratos, feitos no ar, nessa imensa lousa onde existimos. Como explicar aos
outros, que a nossa linguagem é subliminar, que só olhamos os movimentos, a
agitação e clareza do olhar, o mover dos lábios mudos, dizendo para lá do
espelho que nos envolve. A energia que se liberta, comunica e desperta a
consciência daquilo que é intrínseco de cada um. As palavras não fazem sentido
naquele permanecer, alguns sons, talvez, alguns cheiros, certamente. Ligados
pela abstração de um sentimento, que não sabemos explicar, restamos sentados,
próximos, marcando o compasso da respiração surda, serena no peito. As horas
passam, o dia nasce e morre como se não existissem limites. Abrimos uma porta,
que não sabemos onde vai dar, nem se pode ser fechada. E pouco importa que
assim seja, nós somos a presença que queremos. Um para o outro, escrevendo o
diário, com tinta transparente, em letras de uma língua desconhecida.
dc
terça-feira, 9 de julho de 2024
Abstração
segunda-feira, 8 de julho de 2024
A voz que me encanta
Sydnie Christmas um talento cantando
A voz me encanta, a boca
desenha um sorriso, lindo, intraduzível. Os olhos sorriem e brilham, acompanhando
os sons saídos dos lábios. Com a simplicidade, como se apresenta, assim o poema
sai, fluindo na sua voz quente e límpida. Sinto que me afasto, torno-me etéreo
naquela escuta. O mundo, é todo, uma nuvem, que me conduz para lugares
desconhecidos. Sentimentos vários, nunca surgidos, se adentram e me arrepiam a
pele. Afinal a arte, estética, a voz, a sua figura, nos arrebatam deixando-nos
suspensos da realidade material. Sem adivinhar o porquê, enamoro-me do que
vejo, ouço e aprecio. Fantástico quando alguém canta e tem presença, e a voz,
que nos encanta.
dc
https://www.youtube.com/watch?v=pjyy4tYZFDc
quarta-feira, 3 de julho de 2024
Insónia
Tem
noites, como agora, em que acordo sobressaltado, como se tudo já tivesse
dormido. Fico ensimesmado procurando a razão, de tal acontecer, pois, de facto
gostaria de voltar a adormecer. No entanto, o sono não volta e a mente fica
solta, na procura do que fazer. Se contar carneiros não me faz entorpecer e os
olhos fechar, continuo o divagar, à volta de pensamentos estranhos, ou
preocupares tamanhos, tornado-se um inferno, pior que noite fria de inverno.
Tento ler para voltar a adormecer. Escolho um livro desinteressante(?), mas é
difícil, ele tem tantas palavras e frases construidas que ao raciocínio dão
asas, e me levam a voar, neste continuar sem saber, se estou a pensar ou a
sonhar, não entendendo se de olhos fechados, ou abertos, e os sentidos
despertos. Há quem lhe chame Insónia, mas eu tenho dúvidas, não conheço tal “pessoa”,
que ao sono traga tanta cerimónia. Resolvo debitar palavras seguidas, sem fio
condutor que revele saber, e acabo por resolver, que tenho de parar, não vá
acertar no que estou a dizer, e fiquem a saber que tenho dificuldade em
adormecer.
A noite já vai alta e fico em silêncio, aproveitando o vazio que se instala,
olhando os livros nas estantes da sala, pensando, pensando, tentando tomar
consciência da proveniência deste acontecer, sem chegar a conclusão alguma. Possivelmente,
como tem sido costume nos últimos tempos, acordarei sentado no sofá, com dores
em todo o corpo, de mau humor e desde logo a tentar resolver, os muitos
problemas que já fazem parte da rotina, de quem procura sobreviver no marasmo
social e politiqueiro deste país governado, pelos desgovernados eleitos. Ah,
será isto que provoca a tal insónia?
dc
quarta-feira, 19 de junho de 2024
Pode ser...
Pode ser, o começo de uma
qualquer perturbação mental, princípio da senilidade, alzheimer, o esgotamento
das alternativas, ou até a incapacidade de tolerar, a inconsciência que nos
rodeia perante o caos que se instala. Cansa abrirmos a boca, como peixes fora
de água, para questionar as anomalias sociais, políticas e culturais que se
propagam pelos média, acompanhadas pelos dislates de governantes que se
manifestam afastados das vontades do povo. É como se ninguém nos ouvisse, como
se o som não se propagasse. Sentimo-nos uns inúteis, perante as chamadas
cabeças pensantes de hoje, estas possuídas de ideias feitas, vivendo a
sociedade com uma espécie de dissonância cognitiva, que vão vomitando, como
verdades absolutas. É como se tivéssemos nascido numa outra galáxia e estes
daqui não entendessem a nossa linguagem. Caímos nessa armadilha, que o cérebro
sustenta, quando se nos empecilha o discernimento de tal acontecimento,
paralisado pela dúvida e sem argumento para avançar. Vamos caindo na modorra de
não exercer o raciocínio, deixando que as sinapses não existam. Um modo letárgico de navegação à vista, abandonando-se ao marear à-toa.
dc
sábado, 1 de junho de 2024
Maio já lá vai
Maio se finda, trazendo algum
calor que tanto desejamos e precisamos. O verão chega a passos acelerados, para
nos fazer esquecer o rigor do inverno, com a sua chuva e frio necessários, para
a evolução das espécies, no entanto, para nós pobres mortais, um quanto
exagerado que foi, nos faz apreciar, com mais fervor, este sol que nos aquece e
ilumina, de tal sorte, que os olhos brilham, os sorrisos aparecem, o modo de
vestir se altera e até o prazer das verduras no prato e a riqueza das frutas,
nos alegram. A natureza, e as suas diferentes virtudes, nos lembra que a Terra
é um belo lugar para se viver e só o egoísmo e brutalidade dos homens que a
agridem e desrespeitam a podem provocar, e a que vá encontrando meios para se
defender. E acaso essa bestialidade humana se descuidar, “nuclearizando” e
destruindo a sua forma de vida como a conhecemos, ela sempre encontrará forma
de se regenerar demorando o tempo que for necessário, sem esperar pelo
reaparecimento da raça humana.
Recomendo que aproveitem a natureza. Não embarquem, em ódios de alguns humanos,
que se julgam capazes, pelo seu poder, causarem a degradação da Terra e a da
sua natureza, sendo eles os únicos sobreviventes, comprando um bunker, ou
fazendo uma viagem espacial temporária.
dc
terça-feira, 28 de maio de 2024
A voz da memória
Há memórias que lentamente se
vão esvaindo, ao longo da vida. Vão-se transformando em resumos cada vez mais
curtos e longínquos. Essas memórias, construidas, nas mais diversas
circunstâncias da vida, feitas de momentos alegria e felicidade, desenhados e
escritos na mente, com imagens, desejos e vontades. Todas elas, trazem algo de
precioso, que em algum momento tentamos reviver. Uma paisagem, uma flor, uma
brisa, um lugar à beira-mar, um passeio pela mata, um melro negro de bico
amarelo, um peixe vermelho, a revolução com cravos, a luta contra os diabos, o
amor na revolução, os olhos comunicando, um beijo com paixão, um abraço, as
falas havidas, a criança que nasce, o primeiro choro; os cheiros, ah… esses tão
difíceis de cativar na memória. E por fim, a voz, por de mais escutada, que se
sobressai entre todos os ruídos e nos afasta da cegueira do esquecimento.
Quando o som da sua voz chegou, não ouvi, escutei, com todo o meu corpo, e todas
as memórias regressaram, e recolocaram-me no mesmo sentir. Não me lembro bem do
que conversamos, estava somente atento às memórias que se iam redefinindo,
trazidas naquele momento à superfície. Findo o telefonema, olhei para aquele objecto tecnológico, e pensei, afinal, há memórias que se podem reciclar.
Tiramos-lhe, os agravos e desacertos, e tornam-se mais leves e agradáveis, até se
lhes pode acrescentar mais esta, que agora se escreve, ao arquivo central, das
emoções.
dc
quinta-feira, 23 de maio de 2024
Meditar de fato-macaco
Está sentado no banco do jardim. Veste uma espécie de fato-macaco escuro, com
marca de uma empresa, no peito do blusão, que parece ser de uma oficina mecânica,
talvez a mecânica seja a sua profissão. À sua frente, e nas suas costas, estão
os prédios da cooperativa, que tem um nome sugestivo “Gente do Amanhã”. Não é a
primeira vez que por ali está. Aquele é o lugar, que parece ter sido, escolhido
para se isolar e fazer o seu almoço. Ele chega, encosta a bicicleta no
gradeamento, e ali, longe de restaurantes acessíveis, e possíveis, tira a sua
bucha e com ar meditativo inicia o seu repasto. O seu olhar, abrange a zona
ajardinada e a parede do prédio à sua frente. É um olhar vago, como que perdido,
entre a mastigação e os pensamentos que o assaltam, naquela meditação
procurada. Os pássaros, sentem-no e na ânsia de encontrar pequenas sobras,
rodeiam-no de forma agitada, em diferentes pio, pios. Os melros, que abundam
naquele lugar, percorrem a zona relvada, movimentando-se na procura de galhos e
comida. Nem a sua graciosidade, motiva a sua atenção. Nada parece afastá-lo daquele
ar vago. Está, como se procurasse encontrar a explicação, para aquele seu,
estar ali. Fica-me a dúvida, se a razão de estar ali, tem a ver com uma razão
de ordem económica, ou simplesmente, foi uma forma por si escolhida de
encontrar a própria paz. No meio de toda a luta diária, dos dias de hoje, encontrar
paz, e recuperar o equilíbrio, é quase obrigatório, para sobreviver.
O primeiro de Maio, dia do trabalhador, celebrou-se há alguns dias, muito há
ainda para lutar. Questiono-me: será que ele pensa, na gente do amanhã? Terá
ele algum dia ouvido, ou lido, o poema de Vinicius “Operário em construção”?
dc
………
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
(última parte do poema "Operário em construção" de Vnicius de
Morais)