domingo, 22 de setembro de 2024

Num lugar chamado terra

Como gotas de orvalho que se desprendem das folhas, assim passa o tempo e os dias, na mesma intermitência. Cada vez mais devagar, sem enumerá-los, ou classificar, apenas deslizam de um para o outro numa rotina detalhada.
Passeia os olhos pela paisagem. Ao longe, o rio corre, entre as margens, com árvores de porte alongando apontando os céus. Ali está, sentado num pequeno banco, à porta da casa rústica, construida com grossas paredes de pedra, com um amplo alpendre construido em madeira.

A natureza é tudo o que rodeia aquele lugar. Esquilos atrevidos, descem e sobem as árvores, ou se aproximam com curiosidade. A passarada alegre, com o seu chilrear, acompanha o marulhar do rio, num ruído sinfónico. Longe está o pesadelo dos carros, dos sons agitados das buzinas das fábricas, dos automóveis, da passagem dos aviões pelo céu, do zunzum diário das multidões movem, do confronto de vivências, da circulação variada de todo um mundo que se chama sociedade. A natureza, o ar puro, os cheiros ricos e variados funcionam como limpeza para a sua mente. Traziam-lhe a calma, a serenidade e disponibilidade para deixar o cérebro livre, para que a intuição lhe orientasse caminhos. Assustaram-no quando dissera que ia para o outro lugar, mais perto do campo e da serra, viver de outro modo. Viver sim, ao sabor da sua vontade. Plantar, algo que pudesse comer, conviver com os animais, beber água que corria, cristalina, entre as pedras. Ler, ouvir música, escrever, pintar. Gritar todos os dias a plenos pulmões sem medo do incómodo de assim se expressar perante a riqueza da sua liberdade. Agora o tempo não contava como processo de aceleração. Somente dias e noites e as mudanças das quatro estações, que lhe serviam para dizer, que tudo continua a evoluir para o fim, neste lugar chamado terra.

 

dc

 

 


terça-feira, 10 de setembro de 2024

A linha que alinha

 

Talvez linha
Talvez ideias em linha

Se alinham ideias
Com as formas da linha
Quando juntas as linhas
Na expressão do corpo

As linhas conformam
Contornam
Sem desconforto
Linha do rosto
Linha do seio
Linha da coxa, da anca
Da vulva no meio
A linha espanta

Dó ré mi sobre a linha
É a linha da pauta
Na música que se canta
Os pontos fazem a linha
A linha justifica os pontos
Esclarecendo a linha
A dimensão dos pontos

É a estória da linha

No mundo dos contos

 

dc
 




quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Sábado ao ritmo de sobrevivência

 


A guitarra eléctrica com o seu som estridente, ressoava no espaço, a bateria não deixava que ela se isolasse num único som. As baquetas rasgando a pele dos tambores; o baixo, tremendo de excitação não se fazia rogado; as congas percutiam debaixo de mãos agitadas, marcando um ritmo latino; no órgão as teclas, mexiam-se como movidas pela ondulação dos dedos, finos escorreitos sobre a sua superfície. Todos os executantes, se tornavam, temerários e avançavam a todo o vapor soltando notas de vida perante estridência que Santana fazia explodir na sua guitarra. Muita gente, enchia o salão, movendo-se em ondas rítmicas, seguindo a vibração positiva que enchia o ar. No seio de todo aquele agitar, um homem e uma mulher, tipicamente latinos, se isso é possível dizer, dançavam, faces afogueadas, cruzavam as coxas, ou rodopiavam em contorções, de corpos colados, ou afastados, movimentos incríveis de sensualidade, acompanhados dos pés voando sobre o soalho polido. Os corpos suados, rostos transformados, olhares esbraseados. Todos aqueles que dançavam, naquele salão, estavam como que possuídos num terreiro de candomblé. Alguns outros de olhos presos no pare que se destacava, abanando a cabeça, mexendo o corpo, envolvendo-se no ritmo. Sábado de descanso. Sábado para derreter a pressão e o stresse da semana, deixando o corpo sobreviver ao ritmo da vida.

 

dc


terça-feira, 27 de agosto de 2024

Só na rua, voltaremos a ser o que devemos ser

 

O confronto, entre nós e nós, é difícil de superar, comparado com o, nós e os outros. É um diálogo surdo, onde a troca de palavras não têm eco, em que os juízos e opiniões ficam soterrados, em dúvidas e silêncio, enquanto traz há superfície, um rosto de expressão fechada, um corpo morfologicamente alquebrado e um caminhar, em que parecemos vaguear. Somos consumidos por dentro, definhando a cada passo, como se uma doença estranha, nos caísse no colo, quando da visita ao médico. Nascemos com essa condição de sermos humanos, sensíveis, viventes, numa sociedade que não escolhemos, num lugar, onde não gostamos de habitar e por vezes, num país de que nos envergonhamos, pelo papel público que representam as figuras que o dirigem. Não sendo neutros, aos impactos, das falsas, ou verdadeiras notícias, com as quais somos bombardeados, para sermos massa macia, moldável aos poderes fácticos, perante a realidade dos factos sociais que se nos deparam, acumulamos impaciência, nervos tensos, alimentamos a contradição entre acção e inacção. Alguns de nós, queixam-se, e esperançosamente, até se medicam, tentando amortecer o impacto de serem cidadãos de um mundo, onde a morte e a vida, são factores secundários, ou danos colaterais, das ambições de alguns. Se não sairmos à rua, gritando, a dor que nos toma, se nos calarmos perante a injustiça, a paciência esgota-se. Só na rua, voltaremos a ser o que devemos ser, humanos com voz activa. Assim sendo, o que nos espera, é a submissão, um colete de forças, ou um autismo do qual não mais sairemos.

 

dc


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Noite de Lua Cheia


Apontávamos com os dedos, fazendo desenhos abstractos, como se pudéssemos atravessar o espaço e tocar nas estrelas, estas que pareciam depositadas como pontinhos, no céu escuro, tal como poeiras sobre os móveis, na casa que deixáramos abandonada, para sermos observadores do Universo. Como não somos estudiosos dos astros, mas curiosos daquele infinito que na noite se torna tão visível, é-nos permitido divagar sobre a natureza das coisas, ou das coisas da natureza. De preferência, namorando, em noites de lua cheia, com gatos no telhado.

 

dc


domingo, 18 de agosto de 2024

Pensar bebendo chá

 

Eles, envelhecem-nos com as suas falas, como se a sua modernidade, e a tecnologia, lhes desse o direito a todas as coisas, e nós, nos reduzíssemos a peões das suas necessidades. Confundem anos de existência, com a juventude do nosso ser, e a experiência alcançada. Na realidade, nem sabem, quão longe estão da verdade. Por culpa própria, sempre os criamos, afastando-os das dores, e dificuldades que nos trouxeram até aqui. Nós temos o privilégio de viver memórias plenas de cheiros, de olhares que falam e tudo colhem do que se nos permite observar. Vivemos sensibilizados pelo que tocamos, agarramos os significados das palavras da sua suavidade e dureza para nos expressarmos. Abstraímo-nos de procurar fixar o presente em caixas, queremos sentir e viver, todas as recordações, más, ou boas, que nos ajudaram no caminho. Não queremos exibir, a dureza das nossas dificuldades para sensibilizar os outros, queremos que sintam a riqueza do nosso caminho e história, se possível, ajudarmos a melhor observarem e viverem o seu, que agora começam.

dc

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Amar-te sem que sejas meu dono

 

Escondo-me, mesmo que vermelho seja o tecido, para evitar a ofensa com que me possam rotular e não pela timidez, em enfrentar o teu olhar, possuído pelo fogo do amor que neles se revela. O medo não existe em mim, quando és aquele que eu quero saber-me amada. Fui somente apanhada de surpresa, pela tua presença no meu espaço de intimidade, manejando esse objecto, que usas como parte de ti, e que me fixou nas suas entranhas, sem que permissão me fosse solicitada. Amar-te, sem que sejas meu dono, é o mais que preciso, para que me revele na totalidade do que sou.

dc