domingo, 24 de novembro de 2019

Na boca da estória

A tua boca foi o princípio da minha paixão e o amor que nasceu. Foi nos seus deliciosos lábios sedosos, molhados e quentes, o lugar onde o meu coração te sentiu primeiro, derretendo o gelo dentro de mim. Da tua boca recebi a força e energia, que mantém ainda hoje a chama acesa, dela fixei o sabor de frutos silvestres que desvendou a tua natureza, humana sensível, que alimentou este meu gostar, que se eternizou. Se os olhos falam, a tua boca foi uma conversa demorada de prazeres infindos e descobertas. Hoje, já não existe mais gelo dentro de mim, mas a calma que acontece às pessoas, que pelo menos uma vez na vida, foram tocadas por esse prazer de conhecer o que é o amor. Há quem relativize o beijo, com relação aos prazeres da carne, aos valores psicológicos, talvez porque não entendam que o sabor do primeiro beijo, fala mais de nós, de que uma história em livros de muitas páginas, ou das que se contam entre lençóis.

dc

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

As cenouras


Desde que nascemos, dão-nos a cenoura da esperança. A mãe engana-nos com a chupeta, para que se cumpram os horários entre refeições, ou aproveita, para calar o choro com que nos manifestamos contra o engano. Crescemos com a promessa de que evoluiremos no padrão e qualidade de vida, se conquistarmos “coisas”, se nos esforçarmos por atingir objectivos, que nem sabemos a razão da sua existência. Assim fazemos o ensino básico, o secundário, o superior, o mestrado, o doutoramento e por aí fora, já na esperança de que quando findar nos abrirá as portas para um emprego, onde iremos subir escadas sem fim, e talvez, se nos deixarem, atingiremos o topo de carreira, na idade da reforma. Colado a isto tudo, vêm os filósofos da vida, falarem-nos karma, na auto-estima, no esoterismo, na inteligência emocional, etc. etc. tentando travar a revolta, de acabarmos de cabelos brancos, a urinar pelas pernas abaixo, a dormir de pijama caduco, olhando o espelho com olhos cansados, de um percurso de não nos lembramos bem afinal qual era o objectivo. Ou seja, procuramos mais conhecimento, crescimento, qualidade de vida, amar, estar com a natureza e morremos aos poucos nas etapas que durante o caminho nos vão engolindo, deixando-nos endurecer e sem viver, aquilo que certamente, sem nada dessas cenouras, teria decorrido, aos solavancos, talvez menos promissores, mas livres para sermos gente. São vários os especialistas que abordam este tema e lamentavelmente, a maioria de nós, só ao fim de muitos anos nos apercebemos da sua verdade. Afinal quem lucra com o desenhar destes caminhos que a sociedade envolvente faz questão de nos apresentar?

dc

domingo, 17 de novembro de 2019

A estória segue dentro de momentos


Na pausa, olho a janela onde a água da chuva escorre, imagino o frio e a humidade que se deve sentir lá fora. Sinto um arrepio de prazer e dou uma olhada ao quarto. No chão um montão de coisas, roupas, sapatos, carteira, chaves, um tabuleiro com chávenas. Penso para mim, não, não vou começar o dia antecipando a morte da noite. Deixarei que o resto do dia decorrer sem planos, como quem escreve ao correr da pena, assim farei com os minutos e as horas que virão. Tudo acontecerá como tiver de acontecer. Se agora estamos no bem-bom, no meio dos cobertores térmicos, desnecessários, tal é o calor dos nossos corpos, para que temer onde acabaremos o dia, como será a noite, ou se não é para durar? O melhor é viver as delícias do reencontro, fazer o aqui e agora. Não vale a pena sofrer de antecipação, pensando se surgirão as discussões do costume. Se rirmos livremente, deixarmos o corpo solto, entre prazer e interlúdios, até que o cansaço nos apele ao sono, talvez seja mais saudável. O fim da estória, só é escrito depois dos acontecimentos, caso contrário é um fim de um romance qualquer. Eu acho que as coisas entre nós, nunca se repetem, são sempre diferentes, mesmo que o fim possa ter contornos idênticos, existe até a hipótese dele não surgir. Livres daquela questão, de que temos que fazer o que está certo, ou o que esperam de nós, assim a nossa estória, segue dentro de momentos e pode durar num eterno reencontro.

dc

domingo, 10 de novembro de 2019

Há memórias que desmerecem existir


Há memórias, não datadas no tempo, que desmerecem existir, quando deixam um rasto de dor, se tornam um estorvo na mudança, nos prendem nas teias da saudade e travam um novo começar. É difícil percebermos, ou explicar como elas surgem, mesmo que negadas, ou desvalorizadas, dentro de cenários inventados. Memórias que se colam dentro de nós, num apego que nos tira capacidade, nos contamina e não permitem a racionalidade. Um perfume, um gesto, uma imagem e tudo acorda, como se ontem fossem acontecidas. Hoje elas surgiram inesperadamente, na espera silenciosa de um lugar para ficar em eterno repouso.

dc

sábado, 26 de outubro de 2019

CHILE - O Povo Unido Jamais Será Vencido

"Os seres humanos não nascem para sempre no dia em que suas mães dão à luz. Pelo contrário, a vida os obriga a dar à luz a si próprios, uma e outra vez." - Gabriel García Márquez - EM Cidade do México 


 

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Ele parecia um ser humano que só confiava nos cachorros.


Já não olha, não quer ver o sal dos olhos, os rostos macilentos, os sorrisos dos outros, o que vestem, como andam. É um indiferenciado no meio de outros.
Os que o observam, divergem na opinião, pela incapacidade de o entenderem, nem saberem das razões da sua postura e aparência. Uns sentirão dor, pensando ter uma cota de responsabilidade, outros desprezo e muitos outros indiferença ao que vêem.
Senta-se na mesa de bancos altos, chinelos em vez de sapatos, por opção diz ele, roupa gasta, barba por fazer, num rosto chupado, com os olhos escavados, e o tal olhar que não olha, está lá, perdido sem luz. Fica com os dedos das mãos cruzados, unhas sujas, de mãos encardidas, possivelmente por não ter abrigo, ou de andar a catar nos caixotes do lixo. Não parece esperar que alguém entre e lhe ofereça um café, ou um pequeno-almoço que lhe mate a fome atrasada que sempre traz consigo. 
Um possível desempregado de longa duração, um sem-abrigo quem sabe? A sua boca tem demasiados silêncios para se abrir. As emoções, os silêncios, o vazio, e, possivelmente as ideias e os pensamentos se perdem, não se conseguindo ligar nem se entender com a envolvência. Sente-se o caos dentro dele, a falta de perspectiva, a capacidade de tomar um caminho, de ter a atitude certa à resposta, se necessária, ou se aquela quer responder. Eu que o observo e sinto que ele sabe, que perturba os outros com a sua presença, mas que lhe é indiferente, ele é uma bofetada social, para a qual não temos resposta, ou não a procuramos. Procurei a sua fala, mas não consegui muito, o seu olhar continuou para além das minhas costas, evidenciando desinteresse ao que eu pudesse dizer para além da sua escuta interior. Ele não era um cachorro abandonado nas ruas a quem tentamos conquistar a sua confiança nos seres humanos. Ele parecia um ser humano que só confiava nos cachorros.

dc



quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Abraço sem espera


É difícil esta batalha contra o tempo.
É possível que tenhas um outro alguém que aninha nos seus braços o teu corpo.
É bem possível que já não tenhas a memória dos cheiros, dos beijos dos abraços.
É possível que te ame tanto quanto eu, ou te seja cómodo estar mais perto.
No entanto, ainda, não me apercebi se fui colocado na redoma dos trastes que não vale a pena conservar. Se a minha voz e as minhas palavras, já não fazem sentido, na partilha das tuas saudades e memórias. Deste lado, ainda vejo as tuas fotografias, e vou por dentro de cada pormenor que revelam, tentando encontrar as respostas, porque sendo a vida tão curta, porquê apequenarmos tudo o que de bom existiu.
Até porque amar é deixar que a felicidade te abrace, que o teu sorriso seja harmonia do teu rosto, que os dias sejam leves como nuvens de algodão. Mesmo que de longe seja somente uma sombra, ou olhar atento, abraço sem espera.

dc