sexta-feira, 15 de março de 2019

Custava-lhe envelhecer




Custava-lhe muito o envelhecer. Olhava-se no espelho e as rugas marcavam o seu anoitecer. Não adiantava se sentia vivo por dentro, se sorria e caminhava sentindo o vento, se a força nas pernas não lhe faltava, se o coração ainda batia por aquela que o entontecia e que tanto amava. Na verdade, envelhecia, inexorável a passagem do tempo. No rosto as rugas marcam como trilhos, o mapa duma existência, cada uma com a sua memória, mas não falam da riqueza das terras férteis, que dentro si ainda existem para cultivar as emoções, os desejos, os projectos, ou, as rotas do sangue quente que ainda circulam intensamente com a vontade e coragem de viver a vida. Por isso, não havia razão para que a idade o intimidasse, a perspectiva de vida, o tempo que ela dura e a sua qualidade, são tão relativas como muitas outras coisas.
Importante é ter consciência de que o amor acontece sem que se dimensione nenhum desses factores, tão comuns que a sociedade tem por hábito rotular. Nem quando o corpo já não corresponde à sua vontade, se deve desistir, há sempre alguma forma de dar asas ao pensamento e ao sentimento que nos percorre desde o interior, fundo, de nós próprios.

dc

segunda-feira, 11 de março de 2019

De mãos dadas




As mãos dadas sobre o teu peito, o meu peito colado às tuas costas, a tua anca colada no meu ventre, o calor dos dois, o respirar profundo que eu sinto vir de ti, no sono calmo. Sinto a doçura do teu corpo e o seu perfume, quase sinto o teu sangue correr nas veias, como se o meu fosse. É o melhor momento de amor que podia querer, no meu despertar para o dia. Levanto ligeiramente a cabeça e vejo no teu rosto um sorriso nos lábios que me faz adivinhar sonhos. Faltam-me as palavras para descrever todas as emoções que me despertas. Muito mais do que fazer amor é senti-lo neste estar, em que as nossas pernas se entrecruzam como linha num novelo e as tuas mãos seguram firmemente as minhas como se quisessem eternizar o que sentimos e somos.

dc

domingo, 10 de março de 2019

Uma outra violência




A areia incrustou-se na pele reformulando a superfície, como poros sobre poros. Já não importava, ele tomara meu corpo no escaldante areal, do mesmo modo que de seguida me abandonara, frio, violento, como se eu não fosse gente. Cumpria a tradicional brutalidade de tempos idos, em que as mulheres não tinham direitos a não ser o de servir o macho. Estávamos em pleno século XX, mas ele agiu possuindo-me com a força do "direito ancestral”.
Eu caminhava com as pernas tremendo e arrastando os pés no areal. A dor imensa não estava no corpo, mas na alma, tal era vergonha que sentia, por um dia ter aceitado aquele homem para parceiro de uma vida. Não se tratara de um acto de violência doméstica comum, do punho fechado, nem do sangue derramado, mas da posse sem consentimento do meu corpo. Sentia-me suja do seu cheiro, das suas manápulas, dos seus beijos sebentos, da sua força me penetrando.
Sentia-me desfalecer e pensava, naquilo que as pessoas diziam, no dia a dia, “a violência não leva a lugar algum”, então como poderia responder à ignomínia que tinha sofrido, naquela tarde domingueira em que seria suposto conversar para resolver desentendimentos e acabei sendo violada, era assim que eu me sentia. Fora a resposta de força perante o meu desentendimento sobre como víamos a nossa vida em comum, e a resposta ao meu desprazer de o sentir próximo de mim.
Um dia uma amiga dissera-me que o companheiro, quando ela se queixava de dores, lhe dizia “fazemos amor que isso passa”. Teoria de macho vulgar, que não entende que o amor tem sexo e deve ser bom, mas tem de ser partilhado com o mesmo querer e prazer de ambas as partes.
Nem sempre a violência doméstica é de um só sentido, mas o sentido mais comum é aquele a onde a mulher é usada para capricho de gosto alheio. Tu sabes do que falo porque és mulher, ele sabe do que eu falo, porque mesmo atrás das grades, nada seria suficiente para apagar os riscos profundos que me marcam por dentro para todo o sempre. A luta que hoje desenvolvo será sempre efémera, se me ficar pelo pensamento de que nunca voltarei à minha inocência e crença no ser humano, terá de ser antes um registo eterno, que servirá de suporte ao meu esforço, aliado ao de muitos outros homens e mulheres, para trazer a justiça e igualdade de direitos.


dc

Nota:Não foi publicado no Dia da Mulher, pois penso que esse dia, mais do que nunca deve ser de celebração e e conquista de coisas boas e não de coisas tristes.


sábado, 9 de março de 2019

Estória de Amor




Cada um, no seu sítio, agitando-se, indecisos no começar. Um vendo de cima outro observando debaixo para cima, percorrem com passinhos curtos rolando na sua linguagem. Ao fim de alguns momentos, com a confiança com que a natureza os serviu o de cima desloca-se lançando a asa agitando tudo em volta. Sem perder tempo se abeira, e provoca e sem mais aquelas lhe prega um beijo, encostam as cabeças e se vão passarinhando, até ficarem bem juntos olhando e observando o espaço envolvente até retomarem os beijos e o saltitar alegre dos apaixonados. Não era o Dia dos Namorados, mas que pareciam um par de namorados, ai isso pareciam.

dc

domingo, 3 de março de 2019

Esboço dum sonho




Esboçou vezes sem conta, procurando encontrar o espaço, a proporção ideal e as soluções, faltava encontrar o lugar onde construir e o dinheiro para realizar. Teria de ser um qualquer lugar com árvores e junto da água, de preferência a do mar, mas poderia ser um rio, um lago uma barragem, um qualquer espelho de água que lhe permitisse pousar os olhos, sempre que se sentisse cansado dos dias. Ele tinha em mente um sítio especial que visitava frequentemente e que correspondia à maioria das suas premissas. O sonho ele tinha e a ideia base para construir a casa, o lugar poderia ser, mesmo aquele que tanto visitava. O único obstáculo era a falta de condições financeiras para realizar o seu objectivo.
Muita gente diz, para “pensar positivo”, que “tem de fazer isto e aquilo”, para “se obter é preciso trabalhar, esforçar-se”, “nada é de graça” e um sem fim de chavões, mas ele na realidade só apostava no euromilhões, essa sorte tardia, que nunca chega, porque não via “lura onde saísse coelho”, toda a sua vida fora de trabalho e estudo. Como essa gente que tantos conselhos dão, também ele pensava, que estava a um bocadinho assim, pequenino, assim muito pequeno de conseguir, e pondo os dedos, polegar e indicador, a meio centímetro de distância, expressando a dimensão. Afinal era só dinheiro e o dinheiro não dá felicidade, não é? Pois é, esse vil metal que não dá felicidade, que era o necessário para dar o empurrão que precisava para resolver o sonho.
Reflectindo, sobre o assunto, especulando e alargando o leque dos pensamentos, dizia de si para si: por que razão o mundo, tendo evoluído, desta forma actual, com uma natureza rica de diversidade, com seres humanos de diferentes cores e raças, com uma inteligência que se julga diferente e superior, a todos os outros seres que habitam à superfície da terra, nos deixa a léguas de realizar o qualquer ser humano deveria ter por direito? Alguém que cria as cidades, inventa e projecta, desenvolve e aplica os seus conhecimentos científicos, e que se encontra limitado a uma mentalidade economicista que lhe impede de ser livre e poder ver e visitar diferentes lugares do mundo, de ter uma casa, e de poder, se quisesse realizar os sonhos, que não colidem com os interesses de outros? Uma sociedade com diferenças entre seres “humanos” tão acentuadas. Afinal o que pretendem esses que têm milhões em contas de bancos, que exploram seres humanos, para terem dinheiro e luxos, que alguns deles nem apreciam? Não são eles que proclamam que o dinheiro não traz felicidade? Pois pimenta no … dos outros é refresco, como tal todos temos o garrote que nos limita a ser escravos em qualquer momento da história da humanidade. Somos a democracia de direito zero, a favor do direito em numerário de uns poucos.

dc