quarta-feira, 29 de junho de 2022

Qual a pergunta?

 


Tanto tempo passou desde o último beijo. Na gare, deu-se a partida para o outro lado do rio. Quando, dentro do carro, viu o comboio partir, sentiu os olhos embaciados, um frio no corpo e uma espécie de vazio interior. Aquele beijo, gesto de despedida, deixou na boca, o calor e vontade de querer mais. Do abraço, ficou no corpo a sensação e temor estranho, duma ida sem regresso. O perfume, sobrando na pele, se aliou aos gestos, vindo a fixar-se na memória. Seria a última vez que se veriam. Ainda hoje, estranhamente, não sabe qual deles escreveu as últimas linhas daquele romance. Daí, de vez em quando, fluindo no texto, repete-se no tema, na tentativa vã de que a qualquer momento encontrará a resposta à pergunta que não se quer calar.

 

dc


sexta-feira, 24 de junho de 2022

Meia palavra basta

Somos seres insatisfeitos. Quando atingimos um objectivo, para o qual lutamos tempo infindo, não temos capacidade para o viver, retro alimentar, sustentar, para que não seja descartado à primeira contrariedade. O objecto de desejo, após satisfeito, logo perde importância e partimos para outro, esquecendo que é necessário entender a dialéctica subjacente ao relacionamento humano. Os relacionamentos e as vivências são construidos com altos e baixos, com vitórias e derrotas, com emoções negativas e positivas, e, periodicamente, no surgir de momentos criativos, felizes, bordados de alegria e bem-estar. Necessário é, entender que a vida não é um mar de rosas, antes uma rede de acontecimentos, onde é preciso ter paciência, para enfrentar a queda, força para se reerguer e retomar o caminho, mesmo que os joelhos ainda estejam esmurrados e a escorrer sangue. Não há lugar para a lamecha, ou perda de tempo. É urgente saber coser com sabedoria, os rasgões, alisar o tecido comum que nos une, e vestirmos um novo fato, mais elástico, mais resistente e mais sólido. Para bom entendedor, meia palavra basta.

 

dc


terça-feira, 21 de junho de 2022

Incoerências

Ele cirandava pela rua escura de edifícios em ruínas. O miar do gato ao longe, e o ruído que chegava das casas, eram a sua única companhia. O ambiente era idêntico ao modo como estava vivendo, tudo lhe era pesado, ele, contra o mundo. Pensamento absurdo de quem não encontra solução para os seus próprios problemas e se agarra ao pessimismo. Ultimamente, era comum meter-se em batalhas de opiniões e discussões, onde quase sempre ficava sem norte e acabava por se empertigar, perdendo a razão, diluindo-a nas nuvens negras, que ele próprio gerava. Sabia, ter de procurar, fora dos sítios habituais, as respostas, mas acima de tudo, encontrar dentro de si, as perguntas. A rotina instalada, de esperar que as coisas aconteçam, não abria horizontes. Para se obter resultados, é necessário definir bem o que se procura, onde procurar e o que se deseja encontrar. Ali, ele cirandava, mas também, sentar-se na esplanada olhando as plantas do jardim, ou no areal, observando a ondulação mar, só por si, não resultaria, se efectivamente, não deixasse o espírito libertar-se e ter a coragem de arriscar. Ele queria ser alguém, que não se servisse das palavras de forma inadequada, para enganar as emoções, ou alimentar falsas ilusões, antes usá-las para alimentar sonhos e que o ajudassem a enfrentar a realidade. Este debate, permanente dentro de si, espelhando dúvidas, retirava-lhe o sossego, a incerteza no provir, era uma merda. Sim, sabia o que o comum das pessoas dizem: o importante é viver o presente, blá, blá, blá. Pois, está bem, e como se pára o pensamento, que circula à velocidade suprasónica, nessa busca, duma razão para este seu estado de espírito? A culpa será da economia, da pandemia, do medo viscoso que ainda domina as pessoas, no registo da distância física segura, na máscara que açaima, na surdez às evidências, ou na aceitação, da mentira de vozes variadas de sentido único, em todos os media, em especial os televisivos, que agora nesta guerra dos eslavos, se veio acentuar? É bem possível que seja tudo isso, que nos faz perder o norte, pôr em causa os valores com que fomos educados, de duvidar do que aprendemos, do nosso conhecimento, da nossa capacidade de lutar e amar, de expor das fraquezas humanas. Fraquezas estas, exploradas por técnicos e especialistas vários, no sentido de moldar quem somos, para sermos aquilo, que quem domina a sociedade, quer que sejamos. Será essa, a razão da angústia, da dificuldade de comunicar, de fechar o rosto, ou desabar em palavras incoerentes e perdidas de sentido? Possivelmente, a maioria dos outros, nunca entenderão esta “pescadinha de rabo na boca”, que o trouxe a esta rua escura, afastado do comum dos mortais, a sua maioria catequizados por leis e pressões, daqueles que na sombra exercem o poder.
Naquele, caminhar sem destino horas a fio, sem saber porquê e quando parar, a cada passada, surge uma reflexão, uma emoção, a visualização abstracta, o sonho, o desejo de que tudo mude sem que “perca o fio à meada” da existência. É uma busca incessante de perguntas para a resposta que não tem.

 

 

dc

terça-feira, 14 de junho de 2022

Despedida


Sabes, meu bem, era bom ouvir, chamares-me de amor. Infelizmente, nunca ajustaste a vocalização às frases e emoções certas, acima de tudo, às atitudes. Se assim fosse, talvez acreditasse, que valeria a pena continuar. Não foi o caso, e como também sabes, caminhos paralelos, nem no infinito se encontram. Na caminhada longa, que se me propunha, subjacente à palavra, não poderia perder o meu tempo, nem despender energias, que poderiam ser mais úteis, para a descoberta e concretização do meu objectivo. Encontrar o tal, alguém, que faz bem, o que deve ser feito, e encontrar a alegria e uma parte da felicidade, que a todos, o Universo tem para dar. É bem possível que nunca tenhas reparado, mas eu gosto de estórias de amor, que tenham aquelas declarações, mesmo que piegas, que emocionam e deixam lágrimas nos olhos, que projectam eternidades e heranças positivas. Daí, não nos acomodemos, façamos então o que deve ser feito, deixemos de lado o mapa, que não foi desenhado para a caminhada das nossas vidas. Só assim, outro corpo, outra inteligência, cheiros, saberes, risos e lágrimas, chegarão até nós, semeando existência e humanidade necessárias ao caminho de cada um. Foi bom conhecer-te, foi bom aprender e descobrir nesta nossa experiência, que a amizade existe, mas o amor, que se sonha e quer, é uma outra coisa, que se adentra em nós e nem sempre as palavras explicam.

 

dc

 

terça-feira, 7 de junho de 2022

Mãos e seu fascínio

 


Só ficavam os olhos, cor de céu, encimando o rosto, e um cabelo, agitado, de cor clara. O restante do rosto desaparecia debaixo do azul da máscara. Estávamos os dois num gabinete, iluminado o suficiente, para sugerir um espaço reservado. As perguntas tornaram-se presentes e o diálogo se estabeleceu, de forma higiénica, cumprindo com a minha razão de ali estar. As perguntas surgiam e a minha resposta era prolixa, como se quisesse alongar o tempo para poder observá-la. Estranha a forma como ela continuava escrevendo registando o meu depoimento, de cabeça levantada, os olhos me observando e os dedos se agitando sobre o teclado do computador. De vez em quando, ela questionava de forma simples e levava-me a desenvolver o meu discurso. Eu perdia a atenção para o que dizia, olhando os dedos da mão dela, movendo-se com rapidez, quase aflorando as teclas. Dedos esguios, compridos, aveludados, belamente desenhados, como se os delimitassem uma só linha sinuosa. A certo momento, não resisti, quebrando as regras do protocolo profissional, disse-lhe: as suas mãos são muito bonitas! Naquele momento, eu misturei diferentes sentimentos e interpretações, fiquei de forma insólita abstraído do tempo real.
     “ O espaço se torna vazio, o ruído de fundo esmorece...só mãos, como se estas nascessem com o saber das emoções.”

Poderia ter~lhe dito, o quanto elas eram belas e fascinantes, só o receio, de que a voz traísse o meu empolgamento, me levou a usar o corriqueiro: bonitas mãos!
     “Tantas vezes mãos prelúdio de uma música maior, seguindo a pauta de um amor que se descobre. Tantas vezes mãos sustento de um amor maior, no caminho sereno dos dias...”

 

dc



Texto em itálico do blogue: http://escrifalar.blogspot.com/2017/02/maos-se-tocam.html


segunda-feira, 30 de maio de 2022

Encruzilhada de Maio

O mês está no fim. Existe uma ausência, não procurada, que dê sentido às palavras para formular textos. A confusão está instalada no pensamento. Os pensamentos ocorrem, em catadupa, do mesmo modo, que o excesso de informações e a sua variedade temática. Pior, é o conflito, entre aquilo que preenche esses meus pensamentos e a vida real que vai ocorrendo à volta. Escrever sobre isso, mesmo que de forma desordenada, reflectirá pelo menos, algo que possivelmente será transversal a muitas outras boas gentes.

Aqui entre nós, o 25 de Abril passou sem alegria. Um nazi que veio de fora, tirou-nos o desejo e prazer dos festejos. Veio lembrar o poder do capital para dominar os povos. Uma voz, lá de longe, que nos faz arrepiar a pele, com as memórias que nos transportam para um passado de perseguições e mortes. O 1º de Maio, passou quase despercebido, foi insuficiente para animar os que lutam contra o trabalho precário, o desemprego, ou alertar para a forma como estão dominados pelos poderes instituídos. Ficamos reduzidos a uma individualidade induzida, que afasta as pessoas da convivência. Individualidade, que na falta de análise objectiva, está carregada de comodismo, que anestesia a sociedade, plantada por quem manda, para que a obediência seja cega e o colectivo acéfalo. Os mandantes trazem à liça todos os especialistas necessários, para que o trabalho seja feito em nome de uma ciência, que só serve o seu fim. Vimos sendo ensinados, a fazer exercícios e a ir ao ginásio, para aprendermos a olhar somente para o nosso umbigo. Fazer do achismo e opinião própria, que se afasta da ética e da vivência, e criamos muros que nos isolam julgando estar acompanhados. Perante isto, quase que me sinto impotente para dialogar, e procurar a resposta para tanta passividade. Maio para uns têm “Fátima” e peregrinações, outros, desespero no dia a dia de sobrevivência, neste presente inquinado.

 

dc


sexta-feira, 22 de abril de 2022

Amar tem isso

 


Não, não importa que os teus lábios pousem nos meus, como que breves, num sopro de despedida para os sonhos. É um gesto de amor, dizendo, sem palavras, eu estou aqui. Isso é tão suficiente, que fico plena, confiante com o que representa. Amar tem isso, fazer que o simples tenha sentido. A leveza e a graciosidade do voo da borboleta, não lhe tira o colorido e a beleza. Somos assim, amantes, fervorosamente sentindo nas pequenas coisas, a amplitude da totalidade.

 

dc