quarta-feira, 12 de abril de 2023

A lei do piropo não me dizia respeito

Os olhos eram cinzento claro, brilhantes. O cabelo dela de um tom castanho claro, preso atrás na nuca, realçava-lhe o desenho do rosto, com um queixo ligeiramente quadrado, sem ser agressivo. O tom de voz era aveludado, o sorriso era suave e doce, cada vez que pedia desculpa, ou agradecia. O movimento dos lábios bem desenhados e carnudos, perturbavam a minha atenção. Trazia uma t-shirt branca e umas calças cor cinza escuro que lhe davam um ar conservador, sem esconder o corpo bem desenhado, de linhas escorreitas, a cintura desenhada desde o limite dorsal, numa linha suave, até ao cume das pernas. Ela começara a fazer exercício perto de mim, quando a olhei de soslaio, verifiquei que tinha uma aliança de casada no dedo. Pensei para os meus botões, “ainda bem que não me atrevi a avançar com algum elogio de admiração, ou tentei meter conversa de circunstância, para a conhecer melhor”. Na realidade, o ter aliança e ser casada, não impedia que apreciasse a sua beleza e sensualidade, ou que me sentisse tocado na minha sensibilidade. A lei do piropo não me dizia respeito. Ali a singeleza do pensamento, ao primeiro olhar, sem saber, o mais que, por trás de tal figura, pudesse existir. Era uma mulher bonita e digna de ser apreciada, casada, ou não. Ela continuaria a amar o seu amado, ou não, e eu, ficaria com os meus pensamentos, seduzido, respeitoso, grato, por se me permitir conhecer alguém, que me despertava para tal beleza. Naquele lugar, era comum encontrar corpos musculados, ou ginasticados, aquela mulher distinguia-se, mantinha a sua feminilidade, para além do exercício a que submetia o corpo. Sem falsos moralismos, a sua presença, era um bálsamo, para o pausar entre as séries de exercícios repetitivos.

dc

sábado, 8 de abril de 2023

Há momentos, tão sós..


... que até o respirar é falho de expressão. Interrogámo-nos, questionamos, razões e atitudes, as nossas e dos outros, e depois, depois pensamos se vale a pena tanta canseira, a imaginar mundos, onde tudo será diferente. Deitados, na cama de um hospital tudo se reduz a uma condição de dependência, de temor que o inesperado que possa a acontecer, menos da morte, que sabemos tão certa. Interrogámo-nos, do porquê, connosco, da doença ruim, da doença leve, como se houvesse leveza na doença. Que futuro nos espera após sair dali, não seremos mais os mesmos durante muito tempo. Enquanto ali estivermos, feridos, acamados, operados, ou com outro tipo de cuidados, sabemos quem zela por nós, naquele espaço, e quão mal tratados são, de reconhecimento de dedicação, de vida intervalada de urgências, sem rotinas, o inesperado é todos os dias. Nós, também absorvemos todas as dores que nos rodeiam, físicas e sociais, e aproximámo-nos com clareza, da insignificância que somos perante o mundo que nos rodeia. Quantas querelas com família, com vizinhos, por pedaços de nada, quantos ódios, quantos mandões e senhores de poder, dominam, e não são nada perante a doença, que rói por dentro e não tem tréguas, sem medir a classe social ou Poder. No serviço público, continuamos humanos, iguais, tratados por iguais, têm preocupação nos cuidados, são qualificados e dedicados profissionais. Ali, o salário conta, por menor, mas a vontade de ser presença é tão forte, que podemos dizer vale a pena o nosso SNS. Os defeitos que possa ter, são menores comparados com o valor que representam para o povo.

dc

 

terça-feira, 14 de março de 2023

Um Simples Gesto

Penso, silenciado, como um simples gesto, me dominou os sentidos. Sentir os teus dedos deslizando pelo meu ombro. Suave carícia, encaminhando-me na busca de ti. Um gesto de mil palavras, na pele sentidas, nunca alguma vez escritas por outros dedos. Um indefinível corrupio de emoções me toma, funcionando como uma resposta muda no interior de mim. E tento aperceber-me, nesse complexo dicionário dos seres humanos, qual a dimensão da saudade, se tão curto foi esse toque.

 

dc

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

É uma árvore, ponto

A sua imagem agarra-me o olhar. Surge em mim um enorme desejo de a abraçar, como se quisesse sentir a seiva da vida, aperceber-me da sua comunicação com a “sua” sociedade, ou se ela, também, relata as suas dores de existir. Sem coragem para me aproximar e passar aos actos, na impossibilidade para ir mais longe, como mulher casada que não queremos como amante, tento trazê-la para dentro da máquina, fixando-a no espaço restrito, artificial, dos números e traços digitais. É o egoísmo cego, de possuir algo e fazê-lo meu, a que posso recorrer em qualquer situação, em que, vê-la, ajuda-me a decidir, a ganhar maior entendimento de dificuldades emocionais, que é necessário enfrentar e resolver. Assim, registo as suas linhas abruptas, a sua cor, o seu contraste com o ambiente que a envolve, o recorte variado, dramático, majestático da totalidade do seu corpo. Tento saber das razões, do seu fascínio sobre mim, discernir a emoção que se adentra, tomando-me o corpo. O tempo decorre e fico apatetado, hirto, olhando como se uma, outra, dimensão me possuísse, desbravo mentalmente, dezenas de frases e palavras que tentem esclarecer o que me move. Reflicto sobre o seu modo de sobrevivência a cada intempérie, frio, sol, ou calor. Como reage à acção do homem, cada vez que lhe cortam os braços e diminuem-lhe a envergadura, e o fenómeno do seu renascer, com novas formas, com aquela sobranceria, vistosa, cobrindo-a de novo traje e novas cores, como se nada tivesse acontecido. Assume nova imagem, espera as mudanças num ciclo repetitivo, em que o crescimento se vai dando, transmitindo alegria, nesse seu ressurgir, mais viva do que nunca, da dor temporária das amputações, toda se reformula, no florir da sobrevivência. O que se aprende com elas? Quão próxima, ou distante, é a sua existência, dos seres humanos? O que tenho de aprender com ela, qual a essência que nos comunica? Questiono em silêncio, não por necessidade do saber, mas mais, para saborear da estranheza daquilo que representa como "ser vivo". Todo o raciocínio fica longe de qualquer explicação.É uma árvore, ponto.

 

dc


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Fim de tarde


Recusando que a noite aconteça, ela se sobrepões iluminando detalhes, que não deixam despercebida a sua presença. Usa a imagem, a melodia do corpo, a riqueza das palavras e a natureza de ser mulher. Deixando-o atarantado entre o lusco-fusco da descoberta de uma inteligência acima da média, um humor que rasga sorrisos e insinua incapacidade de se dar na totalidade. Ela derrama os olhos pelo chão, escondendo neles, o brilho que a denuncie, temendo ceder à probabilidade de voltar a amar.

dc

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

A memória do beijo

Reconheci aquela voz, surgida do nada, lá de longe, percorrendo centenas de quilómetros, naquela linha invisível que atravessa o ar, sem mudança das nuances que a tornam única. Chegou trazendo com ela memórias, emoções, sentimentos que pareciam já ter sido diluídos, nas insónias, nos dias de vazio, na metamorfose do envelhecimento. O som saído da sua boca, continuava quente, num tom que acarinha cada palavra que pronuncia, como acariciando os meus ouvidos. Tomei-me de pavor, o meu cérebro não visualizava, nem discernia na escuta, os contornos da sua boca, o seu sabor, a textura dos seus lábios, a sua humidade, nem se em cada beijo outrora dado, a língua se insinuava entre os lábios. O tempo mostrava, que a memória do beijo é mais difícil de explicar e de memorizar. O silêncio, o afastamento, a ausência de outras estórias, as noites e dias com a crueza da sobrevivência, foram afastando das memórias, a materialização do teu sabor em mim. Depois de a ouvir, reflecti e pensei, que só repetindo o beijo, o gesto, a atitude, a razão de ele acontecer, poderia fazer regressar todas essas sensações e saber quanto vale um recomeço.

 

dc


terça-feira, 29 de novembro de 2022

Talvez seja...

Eu sei que precisas de mim, que não vives sem a minha presença na tua vida. Quando, por alguma razão me ausento, ficas frio incomunicável, vazio, silencioso. Os teus olhos perdem o brilho, a tua boca é uma linha que não se desmancha, as tuas mãos ficam geladas, os teus braços não reconhecem o prazer dum abraço. A tua criatividade esmorece, nada do que produzes tem alma, nada te satisfaz, és uma página de rascunho permanente. Sem mim não destrinças, na guerra dos sentidos, a paz da agitação. Tem vezes que te desculpas, justificando, não quereres mais sofrer, sendo preferível a abstracção. Dizes para ti próprio, que assim, evitas a tristeza, que a minha ausência traz ao teu crescimento. Covardemente, foges daquilo que eu te dou, tens medo do engrandecimento e da nobreza dos sentimentos que desperto em ti. Esmagas-me com a mesma fúria com espezinhas as folhas secas, que no chão o outono deixou, nessa raiva de saberes o quanto sou importante. Temes ouvir o meu nome, evitas que seja pronunciado e o que ele representa, mesmo sabendo tu, quantos o usam, na sua forma de estar neste mundo, partilhando-o e sentindo a felicidade de o possuírem. Contrariando esse teu pensamento, procuro que reflictas, se vale a pena fugir de mim, eu tão simples, como as quatro letras que fazem meu nome, mas que não deixará de te motivar, surgindo no deitar das noites, como um mantra que se repetirá e te ajudará a adormecer, colando-me assim aos teus sonhos, como a tua sombra até que novamente, faça parte intrínseca de ti e do teu vocabulário de existir. Talvez seja dor, talvez seja pieguice, talvez seja amor

 

dc