domingo, 12 de agosto de 2018

Tempo das flores





Como celebrar depois de tanta ausência, tanto vazio, nesse desaparecimento total, sem volta, se não ir ao mar lançar as flores como oferenda e agradecimento, por me teres permitido acordar da tua dúbia existência.
Ali, arrastando os pés descalços sobre o areal, já não sentia a angústia da tua partida, nem a dor que tinha ficado.  A paz lentamente se ia instalando. Nada se perde tudo se transforma, é um facto. O tempo dá cor à verdade e ajuíza a sua justeza. As flores serviam para te agradecer, por teres um dia passado pelo portal da minha experiência e me teres enriquecido, ao viver a existência tendo-te por perto. Quanto mais não fosse, para perceber que nem sempre a primeira impressão é a que marca os dias que se seguem ao primeiro beijo, ao primeiro abraço, à primeira vez que fizemos amor. Foi o tempo, aquilo que menos aproveitamos, que melhor desenhou o destino do que vivemos. Não existe arrependimento, tudo o que vivemos tinha de ser vivido, ponto.


Beijo. 

Um dia nos encontraremos, se houver o outro lado do mundo, onde dizem já não termos percepção do tempo, nem da sua duração marcada pelas horas do relógio, e então poremos a conversa em dia.


dc





sábado, 4 de agosto de 2018

Ao Nascer do dia




E porque hoje é sábado e o tempo é nosso, e para que a vulgaridade não se instale, revoluciona-se começando no nascer do dia, antes de haver lugar ao descanso. Prazeroso rosa carne, nesse centro do universo, na oralidade desse jeito de amar. Deixar a rotina do exercício samaritano, procurando outras formas de leitura e compreensão do corpo, enriquecendo a diferença, libertando os sentidos, alimentando trejeitos, arabescos, odores e zonas tórridas, aglutinando tudo desde a maciez aveludada que se degusta, à vibração da alma no cume materno.
E por gostar, se repete o ciclo do fazer, até que a exaustão nos consuma, e nos deixe letárgicos perdidos de memórias e tempo de existir.

dc



Recordar





Perante a mudez dos livros, que não lhe respondiam, embora companheiros nas horas de solidão e silêncio, decidiu passear pelos arquivos fotográficos, fugindo da inércia do sofá e das imagens da TV. Foi observando os vários arquivos e suas subdivisões. Ao fazê-lo reparou que “ela” se encontrava por lá, marcando seu espaço, em quantidade e variedade. No entanto, agora, não sabia como atribuir-lhe uma referência de identificação. As tomadas de imagem eram várias, umas tiradas perto, outras mais distantes, umas coladas a sorrisos, algumas nem por isso, umas mais vestida, outras menos. Algumas, conhecia a origem, fotografou-as ele, muitas outras, alguém terá sido, isso também não lhe importava, eram imagens. Nas imagens que ele fizera, sabia o que procurava, o momento que descreviam, a estória que contavam, ou se um simples registo do corpo, realçado pelos traços do lugar. Eram imagens pensadas para cumprir uma função, enriquecidas por uma hierarquia baseada na qualidade do registo e da motivação. A ideia era ficar com elementos de memória, que dessem suporte às vivências passadas, sem que a verdade e a realidade dos acontecimentos fosse perdida.
Manteve-as no arquivo. São resíduos contra a amnésia.

dc

terça-feira, 24 de julho de 2018

Interessante




“É quase uma epidemia ver tantas mulheres inteligentes e atraentes, solteiras”
  Este título "inspirou-me" esta conversa telefónica.


Ela:
< Conta-me coisas...que aches interessantes

Ele:
> Interessante, é estarmos aqui a conversar depois de tanto tempo...(respiração funda, pensamento retrospectivo)
> Interessante, é saber que estás bem.. ...(respiração funda, pensamento retrospectivo)
> Interessante, hoje, foi ter ido parque, caminhar pelo meio das árvores e estar 16 horas sem falar com ninguém;
> Interessante, é sentar-me no banco de jardim e perder a noção do tempo e espaço sonhar e perder-me no sonho;
> Interessante, é pensarmos o que cada um entende por interessante no contexto de cada um, ou no contexto comum entre nós... ...(respiração funda, pensamento introspectivo)
> Interessante, é eu pensar-te, desenhar-te no espaço e ter medo de perder as linhas e a cor... ...(respiração fundaaaaa, pensamento retrospectivooooooo)
> Interessante, é continuar a ter prazer na leitura, quando as coisas não se tornam interessantes.
> Eis algumas coisas, que partilho, talvez interessantes.

> E tu que tens de interessante para me dizeres?

Ela:
< Tu afinal o que esperas de mim?

Ele, pensando:
> Ufa, Isto é que é um monólogo interessante....




sábado, 21 de julho de 2018

A preto e Branco




Aquele exercício de olhar nos olhos, ao cruzar com as pessoas, para encontrar “aquele tal olhar”, que fosse além do ver, talvez fosse resultado de um romantismo empedernido, perdido, esperando que um qualquer brilho diferente, falasse da linguagem certa. Foi decorrendo o tempo. Se olhares aconteceram, não foram tão claros como julgava, ou então já não mobilizavam, nem estava mobilizado para que acontecesse. A época das aventuras, em que um piscar de olhos, era suficiente para motivar um novo romance, assumisse ele a versão de “sério”, ou colorido, com as cores do arco-íris na negridão do céu, já foram. Então acomodou-se, fechou a porta, passou a usar óculos invisíveis capazes de tudo uniformizar, num preto e branco sem meias tintas. Seus olhos deixaram de ser o anúncio de tristeza e da falta, ou de querer encontrar respostas que não cuidavam surgir; passaram a ser um espelho baço sem a alma dos afectos.
A estrada é a direito, sempre em frente, ao encontro do inesperado que possa surgir, ou não. Endurece-se no correr dos anos, o frio das emoções entranha-se até aos ossos, existir é um facto, viver não é uma certeza.

dc