quinta-feira, 4 de julho de 2019

Quatro tempos num só momento


Levantei a cabeça e vi-lhe o sorriso, esperando-me na saudação do reencontro, as palavras, ficaram-me enroladas, a língua perdeu-se na boca que não era minha.
Alterara o percurso, sem saber o porquê, os passos adivinharam a hora e o lugar. Ela de pé, debruando o topo do portão com os braços, estava em espera sem o pensar.
No negro que a vestia, pela primeira vez lhe observei o corpo, fora preciso um acontecimento nefasto, para me deixar meio absorto.
Ah! se as palavras me saíssem da boca, com a intensidade do seu olhar eu faria uma declaração de amor, que tragasse o céu e alongasse a vida até ao mar.

dc

domingo, 30 de junho de 2019

Gatos, bichanos lindos



Tocava com a mão o seu pelo branco, comprido e fofo, enquanto ele empurrava a sua cabeça e rodava procurando abranger, o mais possível da carícia. Os olhos, que não fechava, eram de uma cor amarelo-claro com ligeiro tom de verde e ao centro uma mancha vertical preta. Quando eu parava, ele olhava para mim, com aqueles olhos grandões, sérios, intensos e esperava que eu recomeçasse. Era um autêntico cobertor da serra, peludo e quente. Já não era a primeira vez que eu o via naquele lugar junto do portão, um dia até lhe tirara uma fotografia na varanda da casa. Enquanto isso apareceu o irmão dele, no passeio junto do quintal da casa, tinha os mesmos olhos, mas com o pêlo castanho-escuro, matizado como tivesse madeixas. Aproximei-me dele e de imediato deitou-se no chão rolando e saboreando as minhas mãos passeando no seu pêlo. Não parava, ronronando, e procurando as mãos. Dois bichanos lindos que me interromperam a caminhada e deliciaram-me por instantes. Entretanto, chegou a sua dona, cumprimentou-me educadamente e com voz meiga disse-lhe para eles entrarem em casa, quando a observei com curiosidade reparei num pormenor, ela tinha a cor dos olhos e um olhar semelhantes aos do gato, e um sorriso enorme debruando a boca embelezando o rosto. Afinal “tal gato tal dona”.

dc

sábado, 29 de junho de 2019

Filme fora da caixa


Olhava o écran do computador, como se estivesse numa sala de cinema, onde filme que vemos se aproxima da nossa realidade, tocando-nos tão profundamente, que muito depois de ter findado, ficamos na cadeira, como distraídos digerindo e absorvendo tudo o que acabávamos de presenciar.


O filme tinha como som de fundo, uma canção na voz inconfundível da Diana Krall. As tuas imagens e os diferentes efeitos visuais sugerindo movimento acompanhavam a melodia. As imagens eram o suporte do meu pensamento e construção visual, numa ligação entre o corpo físico e as emoções que durante anos nos envolveram. Era um filme experimental, procurando o registo certo, para conservar viva a memória de todos os momentos e expressões às quais eu colava pensamentos e sentidos vários. Era um filme feito com amor e do amor. Aproveitara a inabilidade do dizer, para usar as mais de mil palavras de cada imagem. 

Vi-o mais de uma vez e, apercebendo-me dos diferentes erros de execução, tentei melhorar o resultado, com isso, fui ganhando a consciência dos nossos erros, embora estes já não se pudessem corrigir, mesmo mudando planos e enquadramentos, ou o registo da estória. Na verdade, isso era impossível, o intervalo tinha sido maior que o tempo de um café, agora a única razão do filme existir, além de preservar as memórias, era permitir a catarse dos sentimentos e aprender com os erros para não comprometer o futuro. Era um filme de autor, sem público, fora da caixa.

dc


quarta-feira, 26 de junho de 2019

Não há como disfarçar


Tentei por várias vezes, alisar a folha de papel amassado. Procurando encontrar nele as frases que escreveras, afinal não fazia mais que tentar apagar as rugas que marcam a exposição da pele ao tempo de vida. As palavras falam como passado, podem ficar escondidas nos vincos do papel caído no caixote do lixo. Aqueles vincos que tenho em cima de mim, podem ser amenizadas, mas não desaparecem e o botox não será solução. Seria um desperdício, os vincos seriam disfarçados, no entanto, continuaria um inchaço mais velho que a pele enrugada, seria algo como um bêbado colocando pó de arroz no nariz vermelho, que não conseguiria matar o tempo e as suas marcas.
Desde sempre pensei e penso, que a melhor forma de enfrentar a idade é trabalhando o corpo e a memória. Para o corpo fazendo exercício físico, para a memória fazendo exercício de leitura e raciocínio permanentes, mesmo sabendo que, neste último, se pode correr o risco de disfarçar a doença de Alzheimer, pois perante as dificuldades, que entendemos como cansaço da idade, vamos escamoteando aos olhares comuns a doença galopante. Assim pensando, deixei de querer disfarçar as rugas, ou de desfazer os vincos no papel para ler as palavras que escreveste em outro tempo, umas e outras não trariam solução ao problema, a seguir ao sessenta e nove, existe o setenta e não há como fugir. Carpe diem.


dc

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Sem me perder de mim


Se fosse possível passar os meus dedos pelos teus olhos, e secar as lágrimas que correm pelo teu rosto, eu o faria. Se tivesse um dom que me permitisse, ajustar todos os mapas do cérebro, para te afastar desse caos em que vives, fá-lo-ia. Se eu fosse médico, com a sabedoria da dimensão física do corpo humano e das suas emoções, tudo faria para curar a dor do teu coração.
Não quero saber, nem me preocupa, quem te magoou por não ter sido aquilo que alimentaste em ti e que esperavas fosse. Preocupa-me, é saber se te sentes como deves ser, que não perdeste a tua auto-estima, a tua inteligência e capacidade para te impores perante o desafio de superar a tristeza do passado recente, de concretizar os teus objectivos, trabalhando sem perder a noção do espaço e tempo, acreditando voltar a amar, sem perderes o espanto e o sorriso, que a todo o ser humano foi concedido. Falo disso, porque sempre te amei no silêncio, mesmo quando os teus sorrisos, não eram para mim, os teus dedos passeavam num outro rosto, e os meus olhos se perdiam do gesto, para se fixavam no teu rosto, e nos teus olhos doridos pela expectativa gorada ante a reacção do teu gesto. Enquanto estive preso ao meu silêncio, nunca me perdi de mim, nem de quem eu sou, nem da esperança férrea do meu gostar-te, para poder um dia ser oportunidade de encantar-te, de ser a resposta às tuas emoções e sentimentos construindo laços comuns.
Estás na encruzilhada, onde vários percursos te desafiam, eu continuo espectador das tuas derivas e expectando que as tuas decisões rumem em relação ao meu ocioso amor.

dc

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Se deixares, talvez...



Se deixares que o tempo corra
Talvez a verdade ocorra.

Se deixares que a dor passe
Talvez alguém te abrace.

Se deixares que a vida aconteça
Talvez a realidade te favoreça.

Se deixares de travar o presente
Talvez leves tudo mais à frente.

Se deixares livre o caminho
Talvez se mude o teu destino.

Entre o deixar e o talvez está o meio
De enfrentar o novo sem receio.

dc