sábado, 28 de novembro de 2020

Soletrar o vazio e o silêncio


Difícil foi recuperá-lo do coma amoroso e do amorfismo que se lhe seguiu. Tudo demasiado confuso para o seu cérebro, primitivo na consciência do que se passava, na dificuldade de juntar palavras ou compreender os sons das falas que em seu redor aconteciam. Faltava-lhe entendimento e capacidade de dimensionar o seu apego. Os olhos escorriam mares, nos lábios, balbuceios incoerentes repetindo sempre a mesma frase: "Foi insuficiente um amor incondicional, para quem te deixa a soletrar o vazio e o silêncio".

dc



quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Folha...

...solitária, aguardando a última sopro que a afaste da seiva, já exígua, que rega as suas veias. Suspensa, espera, seja ele ocaso, ou o amanhecer. Inevitavelmente tombará, no chão ninguém irá reparar dos tempos idos em que enfeitava com a sua beleza o nosso espaço envolvente. Será pisada por todos, uns pela necessidade de seu caminhar pelas ruas, outros pelo prazer de sentir o pisar com a sola do sapato. Nos casos mais comuns, ficará fazendo a cobertura do solo das cidades entupindo esgotos e nos campos ajudando a guardar as águas do céu e adubando as terras, para o renascer futuro. A árvore desnuda chorará a sua partida e durante um tempo de espera ficará de braços levantados pedindo ao céu o regresso de uma nova roupagem.

 

dc

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O risco sabia-lhe tão bem

Surgiu, quase do nada, exigindo atenção. Adentrou na sua vida como se dono e senhor do espaço, como se tivesse direitos conquistados, estabelecendo-se prioridade dentro do seu mundo. Para quê medir consequências? Mergulhou a fundo, quando ele veio ao seu encontro, mostrando-lhe o sorriso, a doçura da boca, manifestando o desejo sem calar a voz, marcando o ritmo das coisas, oferecendo-se, ao seu corpo há muito parado de emoções. Há muito se perdia nos seus escritos, nos rascunhos que nunca voltava a ler, nas pinturas que acabavam guardadas perdidas de outros olhares. Com ele fugia da cidade. Convidava-o a passear num dos seus lugares preferidos, onde existia um espelho de água, onde poderia ver o reflexo, do rosto que não o seu, como se um sonho os juntasse. Arriscava descobrir naqueles momentos, algo mais do que um corpo, mais do que a luz do sol, mais além da quietude das águas e dos barcos ancorados. Na esplanada da Ria, vogando no seu olhar, levava longe a imaginação, perspectivando para além do agora, enquanto o café quente e o pastel de nata não chegavam, para a celebração dum ritual, muito próprio. Rapidamente afastava as perguntas que chegavam à sua mente, temendo as respostas que poderiam afasta-la dele. Uma coisa sabia. Ele dera um safanão na sua rotina, na sua estrutura, e queria aproveitar o quanto possível, deixando-se ir, no enlevo e nas emoções, tão soterradas nos confins da memória. Avançou firme com a irracionalidade que as coisas do coração por vezes alimentam e que desde o primeiro dia dos seus encontros foram donas de si. Para quê avaliar o risco se lhe sabia tão bem? Era preferível viver intensamente um pequeno romance de que viver na paz podre à espera das certezas. Tudo o que começa, tem um fim, importante é viver e prolongar a jornada, para que o fim aconteça como um novo recomeço.

 

dc

 


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Sombras

Quando as sombras nos dominam, ninguém está perto para nos trazer a luz. Ficamos presos nos pensamentos desacertados, limitados no raciocínio e sem porta por onde fugir, ou lugar para se reencontrar. O clima emocional se desequilibra, tropeçamos nas dúvidas prementes, entre o que somos e o que não conseguimos ser. Suspensos, correndo o risco de que uma ligeira brisa nos empurre na queda, tornando-nos a massa mole que atapeta o chão e se espezinha, sendo, com sorte, adubo de um futuro, outras, prazer de quem esmaga pelo prazer de sentir o barulho crocante de um corpo de seiva já desaparecida, vampirizada pelos que, necessitados, em nós, encontraram alento.

 

 

dc

 


sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Sábia natureza


Sabendo deste Outono arrasado pela penúria de alegrias e de máscaras sem bruxas, sem a guloseima de um abraço, ou de um beijo de ternura e celebração, a natureza nos presenteia com a sua cor de apelo ao renascimento, num acreditar, que nem sempre estaremos no redil de quem manda.

 

dc

 

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Antes que o mês acabe

Antes que o mês acabe e perca o folgo ou a vontade de dizer.


Como se pode ter fome de um beijo, se as borboletas viraram larvas?
Como se pode desejar um abraço de alguém que o olhar se perde no longe e os braços ficam caídos?

Na realidade tinha a boca cosida com as linhas da indiferença, os braços presos com ligaduras negras e os olhos tapados por óculos enormes de lentes escuras.
Quando quis questionar sabia da não resposta. Viu o papel pousado na mesa que dizia: não quero sequer pronunciar palavras que possas ouvir, não quero sequer a disponibilidade de um abraço, não quero dar-te a cor dos meus olhos nem aquilo que eles dizem.

Qual a razão do apego, se somos apagados pela indiferença de quem se ama, se somos aquele pontinho negro deixado pela mosca marcando na brancura do papel, que faz desesperadamente mudar de folha?

 

Como se não bastasse, aparece o isolamento confinado, o medo incutido, a liberdade perdida. Perdemos a respiração ao ar livre, a boca tapa-se, cala-se a fala e os temerosos denunciam. O abraço de outrora não acontece, a distância prevalece e o desabafo se interioriza alimentando revolta, o desespero, e tudo isto se acrescenta ao que já antes magoava suficiente.

 

dc

 


domingo, 11 de outubro de 2020

Em jeito de desabafo

“O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.”
– Charlie Chaplin, em ‘trecho do discurso proferido’ no final do filme “O grande ditador”.

 

A mulher atravessou a rua, mesmo com máscara na cara, afastou-se para o passeio oposto, aquele em que fazíamos a nossa caminhada, como se tivesse visto o Diabo. E pensei, para os meus botões. - Esta gente funciona a combustível “cagaço”, segue as normas(?), ou acredita que todos estão contaminados menos elas? Resta-me a ironia para pensar e escrever, o que possivelmente para alguns serão disparates, sobre o assunto.

Sim desinfectem as mãos, respirem o vómito da vossa respiração horas a fio nas máscaras, evitem males maiores, o vírus é mortal, assim podem morrer de morte assistida, durando mais alguns meses. É melhor morrer aos bocadinhos de que duma vez só. Vamos, temos de nos defender, o mais que pudermos, do vírus louco e fiquemos loucos, perante o mundo que nos é roubado todos os dias. Ponham máscara tirem máscara, seja como eles querem, seja em casa, na rua, ou junto ao mar, deixem a imunidade de mãos a abanar. Deixem-se contaminar pelos parasitas de menor porte, que atravessam o nosso caminho, dizendo-nos que é por um bem maior. Continuem comendo a comida plástica, que essa é boa para manter a baixa imunidade, deixem os vegetais e os frutos de lado, é melhor tomar uma vacina, ou um fármaco qualquer, dá menos trabalho, do que confeccionar ou comer bons alimentos. Não abracem, não beijem, não se cheguem perto de ninguém, mantenham a distância social, refugiem-se no mundo virtual, é mais fácil para vos darmos a notícias em pacotes. Comuniquem no Skipe, no Whatsapp, no Facebook, fixem-se no ecran do telemóvel ou do computador e lerão as fake news, mais “verdadeiras”, aprenderão imensos jogos que vos poupam de pensar na vida. Informem, informem de tudo para que sejam elaboradas estatísticas, sejam bons informadores, porque sociedade vigiada, é só na China que acontece, aqui é para o bem. Trabalhem em casa, podem manter a distância social, sem máscaras, caso contrário terão de se sujeitar a horários diversificados, que os patrões há tantos anos defendem, e assim evitam que as empresas, nesta fase difícil, tenham de gastar dinheiro na electricidadde, em espaços próprios, em carros que não sejam os necessários para o serviço do patrão, além das despesas extras de internet e outras. Vá lá colaborem sempre vão tendo emprego. Enriqueçam os pobres youtubers, os donos do Facebook, da Amazon, vejam e deixem-se ver na distância de um cabo. Façam amor sem desgaste de peças, nem odores incómodos, ou artefactos não desinfectados. Não é necessário cheirar ou tocar, poupa-se no banho e na lavagem de roupa. Refugiem-se em casa, deixem ir à rua os mais novos, eles fazem da máscara um fétiche da moda. Aceitemos viver como zombies. Até já reforçaram a dose televisiva da série Walking Dead para que possamos aprender a sobreviver, matando os contaminados pelo vírus da desgraça. A cura é criar cada vez mais castelos, com barreiras de acesso, com mísseis e espingardas, para abater os doentes, se não for amassando-lhes a cabeça, que seja, mantendo-os à distância social. Fica-me a dúvida qual das máscaras as pessoas usam ainda?
Abusivamente, ouso utilizar as palavras, desse que foi um dos maiores de todos os tempos, que me permitem rematar estes meu desabafo.


O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela… de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo… um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.”

Charlie Chaplin, em ‘trecho do discurso proferido’ no final do filme “O grande ditador”.

 

 

dc