quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Sábado ao ritmo de sobrevivência

 


A guitarra eléctrica com o seu som estridente, ressoava no espaço, a bateria não deixava que ela se isolasse num único som. As baquetas rasgando a pele dos tambores; o baixo, tremendo de excitação não se fazia rogado; as congas percutiam debaixo de mãos agitadas, marcando um ritmo latino; no órgão as teclas, mexiam-se como movidas pela ondulação dos dedos, finos escorreitos sobre a sua superfície. Todos os executantes, se tornavam, temerários e avançavam a todo o vapor soltando notas de vida perante estridência que Santana fazia explodir na sua guitarra. Muita gente, enchia o salão, movendo-se em ondas rítmicas, seguindo a vibração positiva que enchia o ar. No seio de todo aquele agitar, um homem e uma mulher, tipicamente latinos, se isso é possível dizer, dançavam, faces afogueadas, cruzavam as coxas, ou rodopiavam em contorções, de corpos colados, ou afastados, movimentos incríveis de sensualidade, acompanhados dos pés voando sobre o soalho polido. Os corpos suados, rostos transformados, olhares esbraseados. Todos aqueles que dançavam, naquele salão, estavam como que possuídos num terreiro de candomblé. Alguns outros de olhos presos no pare que se destacava, abanando a cabeça, mexendo o corpo, envolvendo-se no ritmo. Sábado de descanso. Sábado para derreter a pressão e o stresse da semana, deixando o corpo sobreviver ao ritmo da vida.

 

dc


terça-feira, 27 de agosto de 2024

Só na rua, voltaremos a ser o que devemos ser

 

O confronto, entre nós e nós, é difícil de superar, comparado com o, nós e os outros. É um diálogo surdo, onde a troca de palavras não têm eco, em que os juízos e opiniões ficam soterrados, em dúvidas e silêncio, enquanto traz há superfície, um rosto de expressão fechada, um corpo morfologicamente alquebrado e um caminhar, em que parecemos vaguear. Somos consumidos por dentro, definhando a cada passo, como se uma doença estranha, nos caísse no colo, quando da visita ao médico. Nascemos com essa condição de sermos humanos, sensíveis, viventes, numa sociedade que não escolhemos, num lugar, onde não gostamos de habitar e por vezes, num país de que nos envergonhamos, pelo papel público que representam as figuras que o dirigem. Não sendo neutros, aos impactos, das falsas, ou verdadeiras notícias, com as quais somos bombardeados, para sermos massa macia, moldável aos poderes fácticos, perante a realidade dos factos sociais que se nos deparam, acumulamos impaciência, nervos tensos, alimentamos a contradição entre acção e inacção. Alguns de nós, queixam-se, e esperançosamente, até se medicam, tentando amortecer o impacto de serem cidadãos de um mundo, onde a morte e a vida, são factores secundários, ou danos colaterais, das ambições de alguns. Se não sairmos à rua, gritando, a dor que nos toma, se nos calarmos perante a injustiça, a paciência esgota-se. Só na rua, voltaremos a ser o que devemos ser, humanos com voz activa. Assim sendo, o que nos espera, é a submissão, um colete de forças, ou um autismo do qual não mais sairemos.

 

dc


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Noite de Lua Cheia


Apontávamos com os dedos, fazendo desenhos abstractos, como se pudéssemos atravessar o espaço e tocar nas estrelas, estas que pareciam depositadas como pontinhos, no céu escuro, tal como poeiras sobre os móveis, na casa que deixáramos abandonada, para sermos observadores do Universo. Como não somos estudiosos dos astros, mas curiosos daquele infinito que na noite se torna tão visível, é-nos permitido divagar sobre a natureza das coisas, ou das coisas da natureza. De preferência, namorando, em noites de lua cheia, com gatos no telhado.

 

dc


domingo, 18 de agosto de 2024

Pensar bebendo chá

 

Eles, envelhecem-nos com as suas falas, como se a sua modernidade, e a tecnologia, lhes desse o direito a todas as coisas, e nós, nos reduzíssemos a peões das suas necessidades. Confundem anos de existência, com a juventude do nosso ser, e a experiência alcançada. Na realidade, nem sabem, quão longe estão da verdade. Por culpa própria, sempre os criamos, afastando-os das dores, e dificuldades que nos trouxeram até aqui. Nós temos o privilégio de viver memórias plenas de cheiros, de olhares que falam e tudo colhem do que se nos permite observar. Vivemos sensibilizados pelo que tocamos, agarramos os significados das palavras da sua suavidade e dureza para nos expressarmos. Abstraímo-nos de procurar fixar o presente em caixas, queremos sentir e viver, todas as recordações, más, ou boas, que nos ajudaram no caminho. Não queremos exibir, a dureza das nossas dificuldades para sensibilizar os outros, queremos que sintam a riqueza do nosso caminho e história, se possível, ajudarmos a melhor observarem e viverem o seu, que agora começam.

dc

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Amar-te sem que sejas meu dono

 

Escondo-me, mesmo que vermelho seja o tecido, para evitar a ofensa com que me possam rotular e não pela timidez, em enfrentar o teu olhar, possuído pelo fogo do amor que neles se revela. O medo não existe em mim, quando és aquele que eu quero saber-me amada. Fui somente apanhada de surpresa, pela tua presença no meu espaço de intimidade, manejando esse objecto, que usas como parte de ti, e que me fixou nas suas entranhas, sem que permissão me fosse solicitada. Amar-te, sem que sejas meu dono, é o mais que preciso, para que me revele na totalidade do que sou.

dc


quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Cusquice de verão

 

Enquanto o galão e a torrada não chegavam, ele ia observando o ambiente da esplanada. As conversas eram como os tremoços, amarelas e abundantes. Os temas variavam, entre a cusquice, de quem chegava para iniciar férias e os residentes queixando-se das maleitas da viagem, do verão, do clima com as suas variantes, entre neblinas e sol tórrido, de temperaturas irregulares, do vento forte, pouco comum, para a época. A conversa numa das mesas estava agitada. Duas mulheres conversam, ou melhor, uma fala, com as mãos agitadas como se quisesse sublinhar todas as frases, a outra olha para ela e titubeia uma ou outra frase, para interromper tal eloquência. Esta última, parecia ter botox nas maçãs do rosto, e um olhar meio estrábico, que não deixava perceber, se olha para a outra mulher, ou se para o homem que nas costas dela, sentado, estava tomando o seu café. Na verdade, ela parecia estar mais atenta, ao homem que também olhava no mesmo sentido. Parecia haver uma troca de olhares entre eles. O estrábico olhar facilitava a vida. A outra mulher, que se agitava com a sua fala, estava tão entretida no seu contar, que nem se apercebia. Interrompendo todo o ruído do ambiente, um cão começou a ladrar, para que o dono, que comia uma torrada e tomava meia de leite, dividisse o pequeno-almoço com ele. O dono dividiu, para evitar perturbar o ambiente. Entretanto, os dois que se olhavam, já trocavam uns leves sorrisos disfarçados, como quem não quer a coisa. Ela rodando um pouco mais a cabeça, e o olhar mais intenso, exibindo um pouco as pernas morenas que sobressaiam da sai curta, ele comendo a torrada e sorvendo a meia de leite, lentamente passando a língua pelos lábios insinuando outros saberes e sabores. O sol começava a aparecer, no meio da bruma matinal e calor começava a surgir acompanhado de uma brisa, que se estava a tornar incomoda. A esplanada estava a tornar-se pequena para aqueles dois, um deles tinha de tomar alguma atitude, ou não. Na verdade, o homem levanta-se, e, quando eu esperava uma daquelas cantadas, ou outro avanço, para estabelecer contacto, retira-se todo emproado erecto, como se nada tivesse acontecido. Poderia eu, concluir, que me precipitara no raciocínio? Será que não passara de um pequeno flerte, de aquecimento para os dias de ócio que iriam comandar os próximos dias. Fiquei defraudado, esperava mais daqueles dois, talvez um amor tórrido de verão, ou uma aventura secreta no meio da multidão.

 

DC

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Dialogitar


Falam-se de experiências, cada um no seu canto, contos de perdidos e achados, que não é possível recuperar. Se libertam, criam espaço, na rede neurológica, para não mais se repercutirem, como perdas de tempo. Lembram indecisões, que se não devem repetir, sem esquecer, que no errar e acerto foi onde hoje chegaram. São coisas, como percursos políticos, ideologias, saudades, amores e fatalidades, são farrapos de uma existência longa, que se fixaram, em si próprios, sabe-se lá porquê. E agora numa catarse saudável, deixamos desenrolar, paulatinamente, sem ajuizar, boa de acontecer e desenvolver, numa partilha que nos torna mais leves. É um raciocinar, no decorrer da fala. É, um ir e voltar, nesse procurar de respostas, a perguntas, que se alongam em novas perguntas, num corrupio, agradável que alimenta o conversar. Que bom, encontrar um interlocutor válido, que não acena com a cabeça, em apoio conformado, que retruca, com inteligência, com outras práticas e outros exemplos, revela incongruências, mas também sabe aceitar outras evidências.
A tecnologia digital, aproveitada para servir o ser humano existe e é boa, e contribui, neste caso, para que dois distantes, se tornem próximos, é mais que evidente. Importante, é que o ser humano não seja preguiçoso, e se deixe na comodidade, de ser dominar pelo algoritmo, e se perca nas teias, de quem a domina tais tecnologias, e, passe a repetir padrões de pensamento e dominação.

dc


N: Dialogitar, é um palavrão composto. Dialogar digital