quarta-feira, 23 de maio de 2018

coisas que um dia...




Naquele tempo leu e releu o texto vezes sem conta, e nele se extraia um pedaço que mencionava a palavra “amo” e amor.
A palavra, amo, de amar, fora escrita cerca de trinta vezes e umas quantas, amor, num pedaço de texto de vinte linhas. Repetidamente, assumindo cada uma delas, uma emoção e uma justificada razão para serem escritas. Lamentavelmente, não traziam coladas a si, o gesto que as tornariam reais. O Papel registou. A tinta secou, e o tempo passou deixando amarelecer o papel e o amor que transbordava no seu escrito. Nenhuma decisão foi tomada que pudesse satisfazer um presente, ou prever um futuro. Agora, que sendo passado, não se pode dizer que o amor morreu, mas na realidade ficou preso ao limbo, naquela estante reservada às coisas que um dia...

dc

domingo, 20 de maio de 2018

O único acaso




Na noite surgiu em palavras inesperadas e frases cantadas, que ia retendo no ouvido, enquanto o seu corpo colado ao meu se insinuava. O seu cheiro era único, não conspurcado pelo aroma dos perfumes de frasco, identificava o seu ADN que me seduzia e prendia. A voz rouca e baixa, aliciava-me ao irreal, fazia anular a presença física de objectos, de gente, punha-me a flutuar na nuvem de algodão doce, com que os seus lábios, roçando a pele do rosto, me fazia viver.
Nada acontece por acaso, tudo tem sua razão, não tínhamos tropeçado um no outro. Disse, o acaso? Que desculpas mais arranjaremos? Como se pode passar ao lado do tempo em que nos comunicávamos, revelando desejos, vontades, princípios e fins, gostos e tudo o mais que se pode imaginar. Tudo foi dito, a noite estava a ser o corolário, de muitas promessas, do que estimáramos ser, o nosso primeiro encontro. Desde o primeiro beijo da chegada, ao vinho, entornado na boca um do outro, à mesa do jantar, nada fora por acaso. O único acaso, foi descobrir que a afinidade das emoções e gozo, afinal eram comuns, e que as palavras, as frases feitas, os diálogos de engate, nada tinham que ver com aquela noite, que ainda estremecia dentro de si. 

dc


segunda-feira, 14 de maio de 2018

certeza eu tenho



certeza eu tenho
a pele tem cheiro
o beijo tem paladar
o corpo energia

certeza eu tenho
no amor dois se fundem
na osmose perfeita
se confundem

certeza eu tenho
não é só magia
o futuro tem um corpo
na criança que vê o dia


dc





sexta-feira, 11 de maio de 2018

Passeando na seara





A seara imensa, a perder de vista, dava um tom dourado sobre a terra, contrastando com o azul brilhante do céu. As mãos dela passeavam, livremente, sobre a superfície das espigas de centeio, provocando um restolhar que se misturava com o chilreio dos pássaros, como uma música psicadélica entrando nos seus ouvidos.
Bandos de pássaros sobrevoavam, ou mergulhavam, sobre o solo. Alguns, com as asas agitadas, mantinham-se no topo das plantas, enquanto debicavam o alimento. Qualquer ruído os fazia levantar voo, em grupos que pouco antes pareciam não existir. Ela continuava a sentir, nas pernas e nas mãos, as espigas do centeio marcando os seus movimentos. Sentia-se livre, longe de tudo, do passado e do futuro, só presente. Os olhos semicerrados, pela claridade, eram pequenas frestas no seu rosto. Na boca, o seu sorriso desenhava promessas e o cabelo quase loiro, esvoaçava ao mando da leve brisa que corria. Vestia a cor da paixão, em tecido de linho.
Ao longe ele a observava, deliciado, acompanhando aquele seu deslizar no dourado da seara. A sua mente atrevida, criava cenários: de mão dada correndo pelo meio da seara como crianças, ou jogando às escondidas, fugindo um do outro entre gargalhadas e braços envolvendo-se, ou até, ambos deitados olhando o céu, riscando no ar, de forma abstracta, figuras que íam substituindo palavras de amor, beijos e carícias. Ela virou a cabeça para o lado onde ele se encontrava, assustou-se, quase corou julgando-se descoberto, mas como poderia ela saber, se ele estava meio escondido na sombra da árvore? Seriam os seus pensamentos, voando na brisa, por ela escutados?  Ela era uma noiva, namorando a natureza, uma ilusão que o cérebro traiçoeiro lhe trazia. Tudo estava na sua imaginação, continuava só, na eira da quinta, com o cheiro da palha seca. Alguém que o olhasse, reparava no olhar indefinido, a expressão marcada no seu rosto. Continuava preso ao sonho, de um dia de verão, lá longe. Afinal a memória, lembra-nos, não o que foi, mas o que teríamos gostado que tivesse sido. Há quem chame a isso, vida.
O sol começava a cuidar repousar, o dia quente e seco, começava a ser percorrido por uma aragem fresca. Estava na hora de regressar ao casarão enorme, vazio de gente, onde os móveis antigos e as paredes, preenchidas de pinturas e fotografias, não deixavam de ser tristes com a sua resposta silenciosa à minha tristeza. Ela já não morava ali.

dc

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Enquanto durou, foi para sempre





Viu-se isolada, suspensa aos olhos de todos. Não se envaidecia, ou tinha desgosto, pela cor da pele, isso era o menos importante. O seu corpo era como um cálice, que sugeria beber beleza, quando perante nós. Ela sentia-se uma força da natureza, pela exuberância como desafiava todos os obstáculos, resistindo ao abandono, ao desprezo, tantas vezes revelado em alguns dos rostos, que com ela cruzavam. O nascimento humilde, não a impediram de aprender com decorrer do tempo, mesmo sabendo-se efémera. Ela sabia-se um marco temporário, na alegria de muitos outros, nada seria suficiente para a travar, nessa capacidade de se dar aos que com ela conviviam. Foi isso que o fez perder o tino, apaixonar-se loucamente, e permitir o sustentar de um amor calmo, que só terminou com a sua morte precoce. Nunca houve arrependimento, nem se mediu a eternidade do que existia. Enquanto durou, foi para sempre. Nada podia ser mais intenso e belo, nada poderia ser diferente, dois se amando de igual modo. Independentemente da tristeza, da sua ausência, um sentimento de paz e amor ficara-lhe nas veias, dando-lhe a capacidade de sobreviver e ajudar outros a acreditar, que a vida sempre nos surpreende e não existem limites de tempo, ou espaço, para que isso aconteça. 

sábado, 5 de maio de 2018

Labirinto e silêncio



No silêncio que abraçamos, criamos os nossos próprios labirintos, com sabedoria poderíamos dizer, ancestral, confiantes de que, sendo seus criadores, seremos capazes de os atravessar, com mais, ou menos facilidade. No entanto, mal nos precatamos, criamos um monstro dentro de nós próprios. Estamos presos no centro, sem nos apercebermos como lá chegamos, e como sair. Pior de tudo é que temos consciência, de partida, que a mente nos atraiçoa e nos prega partidas, e como tal as pistas que aceitamos partilhar e construir, na vã esperança de que se de ultrapassam, será só uma questão de tempo, deixam de depender de nós e ganham vida própria. Mais difícil quando não fazemos o percurso a sós e esquecemos, na euforia das emoções, que o labirinto fora construído num roseiral, onde o cheiro, a beleza e a cor, nos inebriam e escondem os espinhos. Assim, a chegada ao outro lado, à saída alegre e feliz, depende muito da capacidade de se confiarem. Da tentativa de acerto e erro, de ultrapassar os pequenos rasgões na pele, com os cuidados intensivos de quem prefere a permanência das emoções pelo tempo fora do que ao inebriante e efémero momento da paixão do começo.


dc