segunda-feira, 11 de maio de 2020

As flores resistem


Considerada frágil, ela reagiu contra todas as tentativas de esmagamento. Uma fura-vidas. Tiraram-lhe o sustento, na tentativa de a quebrarem. Gemendo e sofrendo, foi vivendo com precariedade, até ao dia em que ainda viva e jovem foi conviver com os mais idosos, lugar de verdadeiros apreciadores da sua beleza e capacidade. Embora através deles pudesse fazer um retrato do seu futuro, sentia que voltara à vida. Houve tempos em que à sua volta tudo foi cortado, e ela resistira, crescera, impondo a sua figura diáfana, com um sol vivo centrado no seu corpo. Um infinito esverdeado completava-a, lembrando, um farol para novas rotas sobre o mar. Ela resistira lutando, para ser presente, na vida dos outros que amava e a amavam. Quando a quiseram, como modernamente se faz, embalsama-la em cimento, ela resistiu e criou a sua brecha para respirar e hoje é um exemplo, de abnegação e força que encanta, uma amostra viva, de que até as flores resistem às vicissitudes da dureza das tempestades ou ao meio social onde habitam.

dc

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Perfis ténues


Angustiava a partida, na mesma dimensão da alegria da chegada. Um, na sombra de quem parte, ou chega, outro na visibilidade de quem faz a viagem. Ficam os cheiros, os desenhos ténues de perfis diferentes, que se fixam na pele da espera, de uma outra chegada ou partida. Não se permitiram, delimitar o tempo e a distância, ou o seu fim, deixaram-se escorrer nos carris do vai e vem, com medo de parar numa derradeira estação desabilitada, para interromper a sua viagem em comum. As viagens foram fechadas, seladas as contas, mantêm-se as imagens de perfil ténues, mas presentes como marca de água de um registo valioso.

dc

sábado, 2 de maio de 2020

Engradados


Espalham o óleo untoso do egoísmo e do individualismo, o prazer da superfície das coisas, materializando-as na vida, que regam de desejo e ambição desmedida do ter. Vão-nos automatizando, para sobrevivermos robots da sua máquina infernal de poder. Desequilibram, criam novos paradigmas, rotulam e dão-nos os grilhões modernos, que aceitamos pacificamente, sobre a camada da pele, para que ninguém fuja ao seu controlo. Antes de tudo acontecer, somos desabilitados das asas do raciocínio, da inteligência, dos valores. Alimentam e sustentam o medo que nos faz trabalhar para sobreviver o “cada um por si” sobre o seu domínio.
Engradados de forma indiferenciada, bonecos articulados de uma sociedade corrompida, acumulam-se uns sobres os outros, aceitando pacificamente da voz do mandante, os ditames das elites obscuras, que querem e se vão apoderando, das suas mentes e corpos, tornando-os bestas egoístas, carnais, do eu, antes dos outros. Preparam-nos um futuro, cada vez mais curto, no qual não seremos actores da sua escolha.

dc
 

quinta-feira, 30 de abril de 2020

A mosca e eu


A casa está silenciada, nada acontece, os móveis rangem, como sentissem também eles a mudança do tempo, o frio instala-se, O apartamento acontece no último piso, onde o telhado, em mau estado, permite que a humidade penetre no tecido construtivo.
Os livros à luz pálida do candeeiro, silenciosos, são como observadores atentos daquela figura, sentada imóvel de olhos fixos no pequeno ecrã da televisão. Nada explica a sua postura, ou se atenta naquilo que vê. Cenho fechado e braços cruzados, quase impenetrável. É uma espécie de estado de coma, está lá e não está, um olhar preso ao que não vê, nada parece interessá-lo.
Observo-o de cima quase colada ao tecto, vejo-o sem ele me ver, sinto a sua respiração através do vapor que chega até mim. Escondo-me, o mais possível, sem fazer barulho para que não implique comigo e me dê rapidamente um triste destino. No entanto estranha-me o seu mutismo e aquele ar de pedra fria.
Posso passear nos livros descansada, sem risco de ser apanhada. Eu gosto de livros do seu cheiro a papel velho, da tinta, do pó que se deposita e se cola em definitivo ao livro.

Quando encontro um aberto, delicio-me com o cheiro a tinta que ainda resta. Tenho pena de não saber ler, com o mesmo entusiasmo com o dono da casa o faz, possivelmente neles viveria estórias de encantar.
Distraí-me e bati num dos bibelôs cansativos que ele deposita nas diferentes estantes e lugares, por pouco caía em cima dele. Não sei como ele suporta tanta quinquilharia espalhada, guarda tudo o que lhe dão.
Ansiosamente espero que desligue a televisão e cumpra as suas rotinas. Lavar os dentes, fazer a sua higiene intima, vestir o pijama e aconchegar-se aos cobertores. Quando apaga a luz é altura do meu passeio, que me ajuda a desentorpecer. Até que o dia nasça é uma desbunda, percorro todos os lugares da casa de modo ligeiro e repimpo-me com tudo o que são migalhas. Somente tenho de estar atenta à porta do quarto, se surge luz é porque vai ao banheiro e tenho de ter cuidado, interrompendo a passeata e estar atento aos seus pés, se me distraio ele pode pôr fim a minha vida. Isso e o DDT espalhado, por sítios estratégicos para me apanhar em falso, são os únicos perigos que corro até ao nascer do dia.

— Estou feito, a televisão não dá nada de jeito e o aparelho de música logo agora teve que avariar. Tenho a cabeça a funcionar a mil. O telhado nunca mais é reparado e há contas para pagar. O governo a roubar na reforma, emoções à flor da pele, hum! Tenho de encontrar soluções rapidamente. Esta pausa forçada na noite fria e húmida não é agradável, ainda por cima, aquela mosca não larga andando lá por cima naquele seu zun zun, tira-me do sério e do meu silêncio sossegado, tenho de arrumar com ela antes de me deitar. As moscas são sempre a mesma coisa, a merda muda, mas elas ficam sempre, ao contrário dos governos que são todos diferentes e a merda é sempre a mesma, não muda... Não me vou deitar sem lhe tirar a tosse, vai perder o zun zun de vez. Só faltava que na minha casa também fosse vítima de “bullying”, vais morrer sacana! Aos gajos que mandam, só votando contra poderei afastá-los do poleiro, mas contigo, vai ser já agora.

Como tudo o que acontece, na vida sempre haverá dois pontos de vista diferentes. Não imagino o que ele estará a pensar, tenho de estar atenta, pode sobrar para mim a solução para o seu estado de espírito. Cada vez escasseia mais a comida cá em casa, e não é bom sinal, e quando vê no ecrã da TV aqueles grupos de pessoas bem vestidas com uns cartazes na mão, fica agitado...cheira-me a esturro. Eu não faço ideia do que é aquilo, mas o homem perde a postura e agita-se sempre que aquelas imagens aparecem...levanta-se bruscamente e fica vociferar sozinho e mexer-se, ai fujo a sete pés, não vá sobrar para mim.
— Aquela ali, anda a brincar comigo, parece o Passos provocando o Zé, obrigando-o a apertar o cinto, está mesmo à espera que eu lhe dê uma palmada para desaparecer.
Olha para o que me deu, estar aqui a magicar na vida e a pensar o que farei à puta da mosca que me está a tirar do sério.

dc

Sempre Abril

O dia decorreu chuvoso, como se quisesse impedir que celebrássemos o 25 de Abril, como se o tempo colaborasse com os fantoches que com o decorrer do tempo se tornaram políticos e oportunistas à custa do Abril de há quarenta anos. Os próprios jornais diários chamados de referência, signifique isso o que quiserem, que publicam notícias, embora pobres, que referenciam o dia sobre 25 de Abril, outros como fazem as notícias popularuchas, e nos digitais nem referências. Os desportivos intoxicam-nos, como é costume, com as estatísticas e disparates muito comuns, que nada falam do prazer do jogo, e que provocam a ira entre adeptos dos diferentes clubes envolvidos, com isso vão vendendo mais uns quantos jornais estupidificando as pessoas.

Querem apagar o 25 de Abril de 1974, à força, para que as novas gerações não saibam sequer a razão de hoje ser feriado, do que significou o fim da ditadura para muitos milhões de portugueses, e as diferenças verificadas desde essa altura. Não querem que se saiba nada daqueles que lutaram estoicamente, alguns com perda da própria vida, para que a liberdade fosse efectiva para todos. Que as condições de vida, social, económica e cultural, se alterassem, significativamente, para a maioria dos portugueses. Que esses que lutaram, e ainda hoje lutam, nada quiseram, ou querem, que não seja uma sociedade mais justa, mais humana, para todos.

Nos dias de hoje, os falsos “democratas” querem afastar das ruas e das lapelas os cravos, que foram referência de uma comportamento de gente séria, que não exerceu a vingança perante os exploradores e torturadores, mas que infelizmente não conseguiu perceber que ao aceitar a “democracia burguesa”, estava a permitir que os “senhores” que fugiram na revolução “com o rabo entre as pernas” regressassem e coadjuvados por oportunistas e vira-casacas sem escrúpulos, vindo a assumir novamente os lugares de antigamente e usassem novas técnicas de dominação sobre o povo.
O “Sorriso Democrático dos Exploradores”.

Hoje, os que sempre votam nos mesmos, dizem que devíamos regressar ao antigamente, que não acreditam nos políticos, e que tudo está pior, servindo dessa forma submissa os interesses de desgovernos e dos senhores do capital financeiro.
Sabemos que a luta é difícil, mas não devemos baixar os braços e deixar que tentem apagar da história as lutas do povo, nem permitir que os lacaios dos oligarcas e ricaços, voltem a assumir o poder, esmagando os direitos tão arduamente conquistados.


dc
(Texto escrito em 2015, mas sempre actual) 


quarta-feira, 29 de abril de 2020

Sonhar com um grande amor


Sonhar com um grande amor, por vezes é perigoso. É sabermos que fizemos do irreal a realidade que julgávamos certa, que acreditávamos no que queríamos ver, e não aquilo que nos era mostrado.

O ser humano tem uma capacidade e enorme de fazer cenários de acordo com as expectativas que cria para si próprio, e depois surpreende-se com os fracassos.
Talvez por isso, homens e mulheres, dos mais variados quadrantes sociais, culturais, políticos, vêm, leem, e falam de amor e tudo que ele envolve. Correm atrás do amor, para o receberem ou para o prodigalizar. Procuram-no como uma quimera, ávidos de sentir o tal sentimento, que na maioria dos casos desconhecem, mas tentam adivinhá-lo, nas diferentes manifestações. Às vezes descrevem-no de tal modo e dão-lhe tanto ênfase, que o tornam abstracto. Na verdade, tentam descobrir se de facto ele cria borboletas no estômago, se ele faz tremer, se o coração pula, ao ver a figura, ou imagem do objecto do seu amor.
Compram-se discos, livros, flores, oferecem-se prendas variadas, em dias procurados, ou em dias de êxito, compensando as ausências, ou as permanências menos certas.
Escrevemos, pintamos, trabalhamos, somos criativos e empolgámo-nos mostrando as nossas fraquezas, as nossas capacidades, debaixo da inspiração de um grande amor. Por vezes, ele só existe na imaginação, é musa de inspiração para toda essa criatividade, mas na realidade o objecto do seu amor, só existe na sua mente, ou estamos apaixonados e sós.
A realidade com a sua crueza mostra-nos o engano, a simulação, a inépcia, a incultura, a superficialidade, o mofo da mente, mesmo quando esta parece activa e moderna. Essa realidade encarrega-se de mostrar o apego, a dependência, a incoerência, como emoção que esconde o tal sentimento que ainda, na sua essência, não encontraram.
Quantas vezes o decorrer do tempo mostra, que aquilo que os unia era menor que aquilo que os aproximava. Quantas vezes perante o infortúnio se desmorona toda a expectativa criada em redor desse envolvimento emocional que se confunde com o amor.
O que parecia ideal, quando se distancia assusta-nos. Leva-nos a pensar que estávamos absorvidos por uma espécie de droga, que nos tirava o discernimento e cada vez mais nos impedia de raciocinar sobre o momento.
Será aconselhável a quem procura um grande amor, fazer como dizia um antigo professor que só casara acima dos quarentas anos: “Oh! Pázinho -tratamento carinhoso que ele usava com os alunos a quem respeitava - antes de casar escrevi uma carta à mulher, que era objecto do meu amor, dizendo-lhe que casaria com ela, se tudo o que pretendia e abaixo descrevia, fosse aceite por ela. Então enumerei, os vários itens, do que eu achava importantes para mim, para que fosse a minha mulher, e o que eu estaria disposto a fazer caso ela aceitasse. Ela aceitou e casamos”.
O seu casamento durou até à sua morte, já com quase oitenta anos. Era um casal amoroso, e de um entendimento ímpar.
Talvez para haver um grande amor, ou vir a ter um grande amor, fosse necessário, criar um caderno onde colocássemos as nossas vontades e desejos, uma espécie de deve e haver, onde os envolvidos deveriam expressar todas as seus valores, perspectivas, ambições, desejos, etc. do que querem para evitarem sofrer as decepções e não perderem tempo em “romances” de desgaste, como dizia a escritora, de roda-bota-fora.
De facto deve ser difícil adormecer e acordar, frequentar o mesmo espaço, com quem não se quer como companhia. O contrário também existe, e certamente, neste tempo de quarentena, talvez fosse o ideal para dizer, “ Agora, mais do que nunca, posso dizer valeu a pena termo-nos conhecido”.

dc 2012/2020




sábado, 11 de abril de 2020

Não era um patinho amarelo


Numa pausa da minha leitura, enquanto observava a natureza que me rodeava, surge ele do nada, saltitante, feliz, sem se preocupar com as coisas comuns, de nós mortais, nos dias de hoje. A pequena cabeça parecia ter antenas, movimentando-se olhando à esquerda e direita para cima e para baixo, como se fosse movida a corrente eléctrica. A minha presença certamente trazia-lhe curiosidade e talvez temor. Aproxima-se e afasta-se com rapidez, como se tacteasse a confiança. Ele desconhecia a palavra “Pandemia”, ou quarentena, nem saberia de muitas outras que falavam de morte e dor. Só conhecia as diferentes estações do ano, o passear nas nuvens, a nidificação, os seus predadores e a procura atenta de comida no solo. Também não sabia que aquele seu pular vagabundo, com pequenos passos rápidos, faziam-me ficar atento e deliciar-me com a riqueza e a esperança que me trazia, de que o mundo é muito mais que pequenas coisas, mesmo quando carregadas de morte e frustração. A sua roupagem preta, trazia agarrada a si um amarelo vistoso, que se apagava e surgia no meio das ervas e das flores. Captar a sua imagem no visor da máquina e registá-la, era uma missão difícil, que valia como memória para mais tarde recordar. Tinha consciência que por muito bela que a imagem fosse, ou o que relatasse, a estória que contaria visualmente, seria sempre insuficiente para contar o momento de “convivência”. Daquele instante curto de comunhão (minha, pelo menos) com aquela figurinha, tinha a certeza de que a imagem ficava aquém das mil palavras e das emoções sentidas. Não era um patinho amarelo de peluche, com amêndoas da Páscoa, na montra de uma qualquer loja, era sim a vida, em ponto pequeno, manifestando-se.

dc