sábado, 30 de janeiro de 2021

COISAS DA VIDA

Olhei a cara enrugada e a sua pequenez, não pude deixar de lembrar-me, como somos insignificantes quando os anos nos tomam e somos envolvidos nas teias que a sociedade nos cria. Ficamos tolhidos, encolhidos, com receio de dizer, não, e fazermos, como sempre desejávamos, o nosso caminho seja ele qual for. Assoberbados pelas despesas a que não conseguimos dar resposta, devido às péssimas condições económicas, dependendo de uma reforma precária, obtida em idade avançada, tememos o pior. Não damos um passo, sem que sejam ponderadas todas as possibilidades e os diferentes ângulos de abordagem. E assim vai, correndo o tempo, sem pudermos abrir a porta a um amor, mesmo que tardio, que poderia tornar mais leve o fim do caminho. Quando a liberdade das obrigações diárias de dezenas de anos de trabalho se esfumam, em vez de nos atirarmos à descoberta de novos mundos e vivendo os momentos de ócio como bem nos apetece, os outros, sejam eles os filhos, os netos, ou amigos, nos vêm dizer que é importante contribuir ajudando, naquilo que afinal só lhes dá jeito a eles próprios e não a nós mesmos. E depois os governantes que sempre dizem preocupar-se com os idosos, aumentam o tempo de vida a trabalhar para quando sairmos para a reforma, estarmos de pés para a cova e o dinheiro amealhado ao longo dos anos fique na mão do estado.

dc

 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Cozinhava excessos

Contrariando o ditado popular que diz há sempre um testo para uma panela, sempre escolheu com critério adequado. Não cozinhava para qualquer alguém, o seu gosto gourmet exigia uma escolha criteriosa. Era tão exigente nisso como nos utensílios, nos produtos e a sua qualidade, nas medidas certas da receita, na confecção amorosa e cuidada. Enfeitava a preceito o local de degustação, de modo harmonioso e sedutor. As suas mãos mexiam-se com delicadeza, ou firmeza conforme as exigências e usava os dedos em gesto atrevido, para experimentar num toque subtil a doçura e a espessura da massa. Na boca fazia pausa com os alimentos para deles extrair todas as nuances e sabores, movimentando língua entre o palato e os dentes, deixando-se envolver no ambiente de aromas da degustação cuidada, enquanto saboreava o delicioso néctar das melhores colheitas entre um sorriso de aconchego e um piscar de olho. Apimentava quanto possível, deixava-se ir na envolvência do momento, e banqueteava-se nas delícias afrodisíacas da receita. Sem se interrogar se tudo saíra perfeito, a resposta emocional do outro, era suficiente. Sabia cozinhar os seus excessos, para fazer a catarse das incertezas e dar azo à oportunidade de viver momentos únicos.

dc


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Sombra do que fomos


Suspenso, sem espera, o acaso determinará quando inevitavelmente partirá. Há tanto tempo caído, ninguém irá reparar dos tempos idos onde a sua presença era bem-vinda num qualquer espaço com vida. Agora, fica-se, vazio, amarfanhado por dentro e por fora. Trapos o envolvem, trapos  são os restos da sua memória. Desgrenhado, com a pele escurecida pela intempérie, o cheiro marcando o seu lugar de passagem, diz do alheamento do passar do outro mundo paralelo, do qual já não se sente parte. Pisado, nuns casos por aqueles que lutam pela sobrevivência na luta dos dias, e noutros casos pelos que tem prazer e mesquinhez de sentirem o pisar da sola do sapato, a pobre existência dos outros. Continuará fazendo cama nos portais das casas, enjornalado, ou encartonado, afugentando o frio e entupindo passagens. Se nos campos, debaixo de algum telheiro, irá observando as águas tombando do céu sobre as terras, sabendo que o renascer possivelmente já não será o seu. A sociedade desnuda de humanidade, não chorará a sua partida. Quando definitivamente ausente, os conviventes passantes, que tapam o nariz ao vê-lo nos seus andrajos, ficarão pedindo ao céu que não regresse um outro com uma nova roupagem e outras dores que não conhecem. Alguns, poucos, de pituitária menos sensível, mas de sensibilidade apurada, ainda se preocuparão em amenizar um pouco dos seus dias, não em datas festivas, porque, humanos solidários,  sentem como suas, as lágrimas, ou o descaminho, daquela gente que algures se perdeu na caminhada e não mais encontrou rumo. As roupas velhas com que os vestem, ou a comida que lhes oferecem não resolve, nem limpa consciências, sinaliza sim que se importam, mesmo que de mãos atadas se sintam incapazes de maior impulso. Dão um sinal de que é preciso mudar as consciências. Que o momento é de aprendizagem e não de medos, tempos de avaliar o quanto somos capazes de mudar e de fazer melhores escolhas para a vida que queremos para nós e para os outros.

dc

 


domingo, 29 de novembro de 2020

Opiniões, são como os melões

 

Sinuosas, tortuosas, as mentes que sendo acomodadas na colcha da fartura, condenam, ou criticam, quem não obedece à lei da acomodação, nem quer ser pé de cama do comodismo dos outros, ou dar vantagem a quem vive sem a percepção daquilo que os outros vivem e sentem. As opiniões divergem de acordo, com o berço onde se nasce, do modo como cada se foi formando no correr dos dias, tendo em conta as circunstâncias do meio, e como alcançou os seus objectivos. Acontece que muitos sobem os degraus, com alguém pondo a mão nas costas para que não caiam ou recuem, outros sobem palmo a palmo, degrau a degrau, escorregando e caindo, sem desfalecer, para cumprir com o que se determinou conseguir, comendo a terra que o diabo amassou. Dar uma opinião sobre a fome não é a mesma coisa do que senti-la, dar opinião sobre uma doença grave e dolorosa, não significa vivê-la, quando muito se solidariza com quem sofre. Há quem tenha opinião e a defenda dentro dos princípios que invoca, com razoabilidade e conhecimento, leituras e participação na área que advoga. Há quem tenha opinião tirada de leituras “corridas”, ou de histórias sem fundamento e acha-se conhecedor suficiente de todos os factos. Infelizmente parece ser comum dar opinião, porque se acham no direito de a ter, “estamos em democracia” dizem, perante aqueles que queimaram as pestanas, ou perderam anos da sua vida, aprendendo, estudando, trabalhando arduamente. É verdade, que todos têm direito a dar a sua opinião, por intuição, emoção e o saber da experiência feita, mas também se deve pensar quando ela é só mesmo isso, opinião, por vezes desajustada, e sem sentido não contribuindo para acrescentar, mas somente procurar ganhar um ponto numa conversa, ou discussão, por vaidade, por estupidez ou inconsciência e em muitos casos de forma arrogante e ofensiva.

 

dc


sábado, 28 de novembro de 2020

Soletrar o vazio e o silêncio


Difícil foi recuperá-lo do coma amoroso e do amorfismo que se lhe seguiu. Tudo demasiado confuso para o seu cérebro, primitivo na consciência do que se passava, na dificuldade de juntar palavras ou compreender os sons das falas que em seu redor aconteciam. Faltava-lhe entendimento e capacidade de dimensionar o seu apego. Os olhos escorriam mares, nos lábios, balbuceios incoerentes repetindo sempre a mesma frase: "Foi insuficiente um amor incondicional, para quem te deixa a soletrar o vazio e o silêncio".

dc



quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Folha...

...solitária, aguardando a última sopro que a afaste da seiva, já exígua, que rega as suas veias. Suspensa, espera, seja ele ocaso, ou o amanhecer. Inevitavelmente tombará, no chão ninguém irá reparar dos tempos idos em que enfeitava com a sua beleza o nosso espaço envolvente. Será pisada por todos, uns pela necessidade de seu caminhar pelas ruas, outros pelo prazer de sentir o pisar com a sola do sapato. Nos casos mais comuns, ficará fazendo a cobertura do solo das cidades entupindo esgotos e nos campos ajudando a guardar as águas do céu e adubando as terras, para o renascer futuro. A árvore desnuda chorará a sua partida e durante um tempo de espera ficará de braços levantados pedindo ao céu o regresso de uma nova roupagem.

 

dc

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O risco sabia-lhe tão bem

Surgiu, quase do nada, exigindo atenção. Adentrou na sua vida como se dono e senhor do espaço, como se tivesse direitos conquistados, estabelecendo-se prioridade dentro do seu mundo. Para quê medir consequências? Mergulhou a fundo, quando ele veio ao seu encontro, mostrando-lhe o sorriso, a doçura da boca, manifestando o desejo sem calar a voz, marcando o ritmo das coisas, oferecendo-se, ao seu corpo há muito parado de emoções. Há muito se perdia nos seus escritos, nos rascunhos que nunca voltava a ler, nas pinturas que acabavam guardadas perdidas de outros olhares. Com ele fugia da cidade. Convidava-o a passear num dos seus lugares preferidos, onde existia um espelho de água, onde poderia ver o reflexo, do rosto que não o seu, como se um sonho os juntasse. Arriscava descobrir naqueles momentos, algo mais do que um corpo, mais do que a luz do sol, mais além da quietude das águas e dos barcos ancorados. Na esplanada da Ria, vogando no seu olhar, levava longe a imaginação, perspectivando para além do agora, enquanto o café quente e o pastel de nata não chegavam, para a celebração dum ritual, muito próprio. Rapidamente afastava as perguntas que chegavam à sua mente, temendo as respostas que poderiam afasta-la dele. Uma coisa sabia. Ele dera um safanão na sua rotina, na sua estrutura, e queria aproveitar o quanto possível, deixando-se ir, no enlevo e nas emoções, tão soterradas nos confins da memória. Avançou firme com a irracionalidade que as coisas do coração por vezes alimentam e que desde o primeiro dia dos seus encontros foram donas de si. Para quê avaliar o risco se lhe sabia tão bem? Era preferível viver intensamente um pequeno romance de que viver na paz podre à espera das certezas. Tudo o que começa, tem um fim, importante é viver e prolongar a jornada, para que o fim aconteça como um novo recomeço.

 

dc