domingo, 7 de agosto de 2022

A dúvida


Naquele primeiro encontro, fora das convenções, não sabia, se fizeram amor, ou simplesmente sexo empenhado, saboroso, requintado. Fizeram-no, foi bom e pronto, para quê avaliar muito mais. Fizeram-no repetidamente ao longo daquele dia, como nos tempos posteriores, que estiveram juntos, sem limitações, descobrindo, apreciando cada bocadinho de si. Não seguiam o Kama Sutra, mas alimentavam as tempestades e repousavam na bonança. Conheciam os seus cheiros, no cio, ou fora dele, saboreavam cada interstício de pele, sem medir o tempo, sem amanhã. Jogavam bem naquele campo, sem domínio absoluto de nenhuma das partes. Era uma parte óptima dos dois. À partida ambos embarcaram na aventura da descoberta, empolgados, confiantes, sem muitas palavras, deixando as emoções dominarem, sem sentirmos ser preciso saber algo mais. Foi “amor (?) à primeira vista”. Se assim foi, nasceu cego, que nem intuíram sequer, possíveis in/compatibilidades, nem naqueles pequenos nadas que iam surgindo nas conversas que versavam temas fora do leito. Pareciam temer revelar-se, como se fazê-lo fosse uma disputa de razões, ou que teriam de pensar igual. Conquistar o presente, alimentando projectos com vista o futuro, parecia ser assustador. Ambos sabiam, que somente os “jogos de cama”, não seriam suficientes para alimentarem o que acontecia, que para durar e ser real, seria necessário “primeiro fazer a cama para nela se deitarem”. Poderiam até aceitar, que bastava o que tinham, necessário era assumi-lo. Esta era uma outra tarefa difícil de levar a bom porto, nenhum queria admitir ser somente sexo, porque temiam fosse mais que isso, fugiam de aceitar que teriam de mudar alguma coisa, para que a perenidade do que existia tivesse mais substrato e se tornasse duradouro. Partir deixaria dúvidas, ficar exigia compromisso, reconhecer que algo mais acontecera. Simultaneamente, num coro a duas vozes, surgiu a pergunta, e agora?

 

dc

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Na busca da diferença

 


Queria apanhar o sol, deitando-se na linha do horizonte. Queria fixar os últimos instantes do dia com a sua cor quente e as alterações da sua forma, conforme se vai sumindo aos nossos olhos, como sempre faz, num esconde, esconde, entre o dia e a noite. Não fujo à regra, sinto o fascínio do comum dos mortais, perante este fenómeno, mas queria buscar a diferença, para que este momento fosse só meu, que a escolha tivesse o meu toque, o meu enquadramento, fosse o meu sol. Nesse procura de captar a melhor imagem, que já em outras alturas tentei obter, fui fazendo sucessivos disparos, quando de repente uma ave que desconheço o nome, talvez pressentido a minha motivação, resolveu ajudar, colocando-se no lugar certo, para equilibrar a composição e enriquecer o momento. Fico grato por tal ajuda, que me encheu o peito de alegria e vaidade pela sua parceria, que decidi publicar a imagem.

 

dc

domingo, 31 de julho de 2022

Passeio no areal


Passeio-me pelo areal, fujo de mim, atordoando-me com o som do mar que se agita e se engrandece, perante os meus olhos que o vão observando, temeroso da sua força que tudo derruba e do seu fascínio, que nos coloca na vontade de nele entrar, derrubando ondas, correndo o risco de nele ser retido. Fico-me pela tentação e bordejo o derramar das ondas no areal, apagando as pegadas que vou deixando, anulando o rastro da minha passagem, ausentando-me, como se desenhos a giz num quadro preto.
Vou colocando um pé a seguir ao outro, sem pensar que o faço. Eu estou caminhando no silêncio interior. Não determino, nem distância, nem tempo para ali estar, somente esmagando a areia com os pés, como acupuntura, para recuperação do corpo e da mente.
Nem todos procuramos o mesmo. Essa é a riqueza da vida. Aqueles que eu observo, quando passo, homem e mulher, não estão na mesma onda. Chegaram ao areal, vestidos de traje completo, foram para perto do finalizar da onda molhar os pés, sorrindo e olhando-se, como se procurassem baptismo para o seu nascer de amantes, o mar premiou-os com o seu brilho.

 

dc

 

 

 

sexta-feira, 29 de julho de 2022

"Ver" com os dedos

 

Tocou a superfície fria, lisa, acetinada, sentia-lhe as formas arredondadas, o volume dos lábios, as reentrâncias do cabelo e dos olhos. Enquanto isso, a sua voz ia relatando, o que sentia na polpa dos dedos. O mármore branco, falava dum mundo com cores. A cada peça tocada, sentia-se-lhe a vibração na voz, tal era a forma intensa com que descrevia cada pormenor e o seu significado: que rosto tão suave! Que boca tão perfeita! Oh! Que rosto tão redondinho, é um menino!? Como é possível esculpir tal beleza? Rosa, invisual desde criança, agora já adulta, naquele momento, apreciava um busto de criança. A sua descrição pormenorizada e emocionada, era o retrato fiel do que eu via, seu acompanhante, que com mais alguns alunos do curso de pintura, voluntariamente nos dispuséramos para aquela visita guiada, para invisuais, no Museu do Escultor Teixeira Lopes. Foi um sábado memorável, uma das mais enriquecedoras experiências para nós, jovens, que queríamos aprender a arte de esculpir e pintar. Percebi aí, que para ser um artista, teria de possuir uma leitura e sensibilidade para além do visível. Aprendemos, que na ponta dos dedos, havia mais sensibilidade e percepção à flor da pele, do que nós de olhos abertos, sem a arte, de saber tocar. Se para ela, um sentido não existia, todos os outros estavam bem mais latentes e enriquecidos. Quase apetecia dizer, que deveríamos aprender de olhos fechados, antes de nos atrevermos a mais.

 

dc


domingo, 24 de julho de 2022

É bom não ignorar


Ignorar quem nos ignora, é fazer prevalecer o respeito por nós próprios. É um caso para registar, quando alguém passa por nós, neste rodízio da vida, com ar compenetrado, olhar alongado na distância, quase roçando o nosso corpo, naquele ignorar “involuntário”. É bom não ignorar quem nos ignora, ou tenta passar despercebido, mesmo quando passa pela nossa frente e o resto do mundo estivesse para além das nossas costas. Quem nos ignora, informa quanto à sua identidade e caracteriza a sua tipologia como pessoa. Não deve passar em branco, àquele que é ignorado, a conduta do outro. O ignorar desse outro, pode ser uma espécie de provocação, que muitas vezes tem um efeito contrário. Aquele que em mim não repara, quer que eu fique atento à sua visibilidade, quando sou invisível aos seus olhos. A resposta ao seu ignorar, é nos fazermos notados, saudando, sorrindo, enfrentando, questionar quem não quer ser questionado e queria fazer-nos ignorados, depois, depois rodar, dando de costas, caminhando para um outro lugar, onde o cheiro da falta de ética não tresande.

dc


terça-feira, 12 de julho de 2022

Amo o mar

Imenso o verde-azul, que adentra nos meus olhos, é, talvez, a fala da origem que me toca a alma. Ondas sonoras e de massa líquida, surgindo das profundezas, misturam-se com o piar estridente das gaivotas, que vão observando e aflorando a superfície com voos rasantes, numa conversa celestial com os meus sentidos. Vindos do mar, somos preenchidos por uma massa de água, formatada em design único, tornados, talvez, pensantes perdidos das guelras, da suavidade da pele e do deslizar em ondulares movimentos. É bem possível que essa seja a razão que nos atrai e nos envolve, em horas de música repetitiva, seduzindo-nos a arriscar, avançando na procura do horizonte distante, como se agora fosse possível caminhar sobre as águas, ou não temer afundar-se dentro delas. Amo o mar, como o temo pela perigosa atracção da sua imensa solidão, ele faz-me correr riscos, sempre que alguma coisa me perturba o discernimento, é nele que procuro resposta. É com ele, que me permito meditar, para além das coisas comuns, para encontrar a paz que não sobeja no seio das gentes. Também nele posso extravasar uma, ou outra, pequena loucura restrita ao pensamento.


dc


quinta-feira, 7 de julho de 2022

Outras Guerras

 

Chorei, a guerra chegou à soleira da porta da loja. Nela estava deitado, um negro, um "sem-abrigo" coberto de farrapos e cartão, como um cão de guarda, impedindo o acesso. Funcionava como um “segurança”, um alarme humano. Um ser abandonado por todas as outras guerras, que ninguém chorou. Tiranos o despojaram da vida, com o mesmo abuso com que faziam a guerra, colocavam bombas em casa alheia e aliciavam com falsas promessas. Ali, na soleira da porta, estava a fotografia, de um país colonizado, à espera da libertação. Ali, estava o exemplo, de como a um povo, se lhe tira o orgulho e se reduz a restos. (Moçambique 1973)

dc