terça-feira, 29 de novembro de 2022

Talvez seja...

Eu sei que precisas de mim, que não vives sem a minha presença na tua vida. Quando, por alguma razão me ausento, ficas frio incomunicável, vazio, silencioso. Os teus olhos perdem o brilho, a tua boca é uma linha que não se desmancha, as tuas mãos ficam geladas, os teus braços não reconhecem o prazer dum abraço. A tua criatividade esmorece, nada do que produzes tem alma, nada te satisfaz, és uma página de rascunho permanente. Sem mim não destrinças, na guerra dos sentidos, a paz da agitação. Tem vezes que te desculpas, justificando, não quereres mais sofrer, sendo preferível a abstracção. Dizes para ti próprio, que assim, evitas a tristeza, que a minha ausência traz ao teu crescimento. Covardemente, foges daquilo que eu te dou, tens medo do engrandecimento e da nobreza dos sentimentos que desperto em ti. Esmagas-me com a mesma fúria com espezinhas as folhas secas, que no chão o outono deixou, nessa raiva de saberes o quanto sou importante. Temes ouvir o meu nome, evitas que seja pronunciado e o que ele representa, mesmo sabendo tu, quantos o usam, na sua forma de estar neste mundo, partilhando-o e sentindo a felicidade de o possuírem. Contrariando esse teu pensamento, procuro que reflictas, se vale a pena fugir de mim, eu tão simples, como as quatro letras que fazem meu nome, mas que não deixará de te motivar, surgindo no deitar das noites, como um mantra que se repetirá e te ajudará a adormecer, colando-me assim aos teus sonhos, como a tua sombra até que novamente, faça parte intrínseca de ti e do teu vocabulário de existir. Talvez seja dor, talvez seja pieguice, talvez seja amor

 

dc

 


domingo, 27 de novembro de 2022

Resistir, resistir sempre

 


Alimentamos fantasmas, esgotando a capacidade de entendimento. Procuramos razões, fugimos de nós, sem saber onde tudo começou e acabou, desviamos os olhos e o pensamento, para o lugar das flores, na espera de que o seu aroma nos distraia, da sujeira que nos rodeia, como paliativo, ou disfarce, da precariedade em que vivemos e das dores que somos tomados. Torna-se difícil tolerar, os que usam o poder, para nos enganarem, dizendo que estão do nosso lado. Levam-nos ao extremo das dificuldades e depois tentam corromper-nos a moral, dando o dinheiro que nos foi roubado. Eles preocupam-se com os outros, em guerras e terras distantes, e esquecem-se daqueles que diariamente são espoliados na sua casa. Não é o povo que faz as guerras, permite o enriquecimento dos bancos, e dos oligarcas, ele só conhece uma coisa, o trabalho e ter de lutar diariamente, desde que nasce, para possuir algo que minimize as más condições materiais, culturais e de saúde, necessárias à sua subsistência. Continuamos, resistindo e persistindo em contrariar esse, quase destino, acreditando que um dia, com o esforço comum dos povos, possamos impedir que parasitas nos governem, e poderes subterrâneos imponham as suas vontades.

dc


terça-feira, 15 de novembro de 2022

Sem seguir o rebanho


A voz se perdeu, especialistas consultados, não lhe encontram solução. Dizem as más-línguas, que são as falas guardadas, as desculpas não expressas, os remorsos, a depressão, as dores não explicitadas toda uma série disparada de motivos. Adivinham-se médicos, das maleitas dos outros, como se treinados pela experiência da cura das suas. Não entendem a natureza humana, da perda da vitalidade do corpo, do cansaço do uso, do arrastar das memórias, da pressão dos dias e da vivência. Filósofos da vida alheia, de uma penada, dão sugestões de cura, opinando, como agora é comum fazer-se, mesmo desconhecendo, ou investigando sobre. Felizmente, que a persistência, o acreditar que a mudança, ainda tem espaço para acontecer, que não existem limites para o sonho, para os projectos e realizações, que se sobrepõem ao cansaço das vozes dissonantes e patéticas de figuras do nada.

dc


segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Uma pausa necessária


Conversador e ouvidor, agora, só tinha o silêncio, o seu silêncio. O ruído existe nos outros e no que o rodeia, mas está fora de dele. Não assimila ruídos, nem imagina ruídos. Os seus tímpanos estão cobertos de cera da indiferença à escuta. Sente-se um surdo de nascença, que lê nos lábios, vê gestos, talheres que se cruzam, pratos que se chocam, copos que se tocam, bocas que se movimentam, beijos de diferentes intensidades, mãos que se agitam, sorrisos e pretensas gargalhadas. Sente uma ausência tamanha, como se estivesse suspenso sem gravidade, estava, tal qual, no cinema mudo de outrora. É uma total ausência de estar, uma suspensão de vida, é um silêncio de necessidade, que ninguém interrompe, que o faz fechar a boca e não pronunciar qualquer ruído. É bem possível, que o motivo esteja errado, ou seja, o receio de falar sem acerto, que o faz isolar, sem dizer aos outros que não está comunicável. Tem de fazer uma pausa para se reencontrar, descobrir como falar correto, sem magoar, ofender, ou alimentar debate inútil do saber, ou de ter, a pretensa razão. Precisa do estímulo certo para um dia voltar aos ruídos, às palavras e à escuta, que por agora enfadonha e um pouco desestimulante, lhe tirou a curiosidade, a paciência e o prazer da conversa.

 

dc

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Na sozinhês do banco de jardim



Gosto de me esperar, único, na sozinhês do banco de jardim. É domingo, a manhã está amena. Observo de modo meditativo, as árvores e as flores sobre o jardim, os pássaros, que neste meu esperar silenciado, me acompanham com o seu cantar melodioso, e não sabem, muito menos, adivinham, o quanto me fazem companhia e alegram. Fascina-me a sua graciosidade, o seu saltitar, nervoso e dinâmico, sobre o tapete de relva, ou o seu voo fugaz para a árvore mais próxima. Todos parecem iguais de morfologia, mas distintos na cor e desenho bem diferenciado, como que cada uma das suas “famílias” se identifica. O melro, que do preto só se distingue o seu pequeno bico e as rosadas patas; o pintassilgo de roupagem colorida, a poupa, encristada em cores sóbrias, a pomba acinzentada que parece ronronar, o raro canário amarelo de cantar distinto, e nos dias de hoje a predadora gaivota, fugida do mar e das docas, se passeia pela cidade, onde esgravata dos seus lixos abandonados, na busca de comida que no mar já não encontra.

Tudo isto neste esperar pacífico, onde estou, tal estátua, indiferente para quem me vê. Invisibilidade que leva ao engano, a pomba breve junto aos meus pés e o cão surgido, que se encosta de necessidade na minha perna, logo fugindo de espanto perante o meu prolongado, shiiitttt. Chegam até mim, trazidos pela brisa, aromas dos diferentes comeres das casas próximas, vêm enunciando, o menu melhorado, domingueiro. Vêm matizados com os odores do jardim, uns de refogados de cebola, estalando, outros de assado de carne melhorado, ou peixe grelhado. As vozes das gentes, que ali habitam, diluem-se em murmúrios entrando pelos ouvidos, rompendo o ar com facilidade. Enquanto isso ruídos dos carros da cidade se esbatem na lonjura. Adivinho naquelas casas, os banhos matinais domingueiros, apurados pela ausência da pressa, as barbas que se desfazem com cuidado, as mulheres que se perfumam e cuidam do seu rosto. Todos escolhendo cuidadosamente as roupas que saem da rotina do trabalho e surgem como a estrear. Como se à missa, todos tivessem missão por ir. Também posso lobrigar, muitos outros que se aproveitam, do lazer possível, e desfazem o tempo como lhes apraz, abandonando-se num desmazelo procurado, de indolência, tudo feito a desoras, distraindo-se a ver televisão, ou até um possível sexo gostoso e assim quebram a rotina do trabalho da semana.

Sinto-me num domingo adormecido, como aqueles que premeiam a Páscoa de todos os anos, com nuvens que se misturam na leveza do céu, brancas e cinzentas, que o sol vai furando em entretantos. Este é um domingo sem falas, nem interrupções, neste meu observar e pensar, onde também eu me cuido estando só.

 

dc


terça-feira, 27 de setembro de 2022

Ausência

 

Acredito que a saudade não mata, caso contrário há muito estaria morto, tal a falta que me fazes, a cada minuto que o calendário vai levando da vida.

dc


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O sapo nem tempo teve de virar príncipe.

 


Os olhos brilham, um meio sorriso aflora-lhe os lábios cor de rosa, mostrando levemente os dentes certos e bonitos. O cabelo loiro, quase branco, encaracolado e comprido, cai-lhe sobre os ombros. Tem um casaco de malha cor rosa, muito suave, que a veste por cima da camiseta, aconchegando o corpo.
O almoço depois do banho de mar, num pequeno restaurante, acompanhado de vinho branco e sobremesa, desenrolado com agradável conversa, deixou-os leves e bem-dispostos. Pagam e saem.
Vão passear num pequeno jardim próximo, quando chegam, poucos passos andados, ela coloca a écharpe, de tecido leve, sobre o chão e deitam-se nela, sobre a relva. Olham o céu azul sobre as suas, cabeças bem próximas sentindo o vibrar dos corpos, com risadas e disparates que vão dizendo, vivem o momento. Sente-se a intimidade e a liberdade de estar, a alegria diz-lhes que o tempo não existe. O mundo pára em redor, só eles, são, o restante é cenário a compor a imagem.
Podia ter sido para sempre, mas ficou por aí, tal é o medo que se gera quando nos parece bom de mais. Naquele jeito bem português de ter medo de viver a felicidade quando esta nos toca, logo se foram inventando, ou desconfiando razões, matando desde logo, a probabilidade, sequer, de poder dar certo. Encontram-se logo prumos, paredes, materiais de isolamento do quotidiano, do passado, de uma outra gesta e usam travões às quatro rodas levantando os obstáculos, que nem sombra fazem no chão.
Saíram do jardim, os óculos escuros fixaram-se na cara, o negro visível fechou as portas ao futuro. O sapo nem tempo teve de virar príncipe.


dc