A casa está silenciada, nada
acontece, os móveis rangem, como sentissem também eles a mudança do tempo, o
frio instala-se, O apartamento acontece no último piso, onde o telhado, em mau
estado, permite que a humidade penetre no tecido construtivo.
Os livros à luz pálida do
candeeiro, silenciosos, são como observadores atentos daquela figura, sentada
imóvel de olhos fixos no pequeno ecrã da televisão. Nada explica a sua postura,
ou se atenta naquilo que vê. Cenho fechado e braços cruzados, quase impenetrável.
É uma espécie de estado de coma, está lá e não está, um olhar preso ao que não
vê, nada parece interessá-lo.
Observo-o de cima quase colada
ao tecto, vejo-o sem ele me ver, sinto a sua respiração através do vapor que
chega até mim. Escondo-me, o mais possível, sem fazer barulho para que não
implique comigo e me dê rapidamente um triste destino. No entanto estranha-me o
seu mutismo e aquele ar de pedra fria.
Posso passear nos livros descansada, sem risco de ser apanhada. Eu gosto de
livros do seu cheiro a papel velho, da tinta, do pó que se deposita e se cola
em definitivo ao livro.
Quando encontro um aberto, delicio-me com o cheiro a tinta que ainda resta. Tenho
pena de não saber ler, com o mesmo entusiasmo com o dono da casa o faz,
possivelmente neles viveria estórias de encantar.
Distraí-me e bati num dos bibelôs cansativos que ele deposita nas diferentes
estantes e lugares, por pouco caía em cima dele. Não sei como ele suporta tanta
quinquilharia espalhada, guarda tudo o que lhe dão.
Ansiosamente espero que desligue a televisão e cumpra as suas rotinas. Lavar os
dentes, fazer a sua higiene intima, vestir o pijama e aconchegar-se aos
cobertores. Quando apaga a luz é altura do meu passeio, que me ajuda a
desentorpecer. Até que o dia nasça é uma desbunda, percorro todos os lugares da
casa de modo ligeiro e repimpo-me com tudo o que são migalhas. Somente tenho de
estar atenta à porta do quarto, se surge luz é porque vai ao banheiro e tenho
de ter cuidado, interrompendo a passeata e estar atento aos seus pés, se me
distraio ele pode pôr fim a minha vida. Isso e o DDT espalhado, por sítios
estratégicos para me apanhar em falso, são os únicos perigos que corro até ao
nascer do dia.
— Estou feito, a televisão não dá nada de jeito e o aparelho de música logo agora
teve que avariar. Tenho a cabeça a funcionar a mil. O telhado nunca mais é
reparado e há contas para pagar. O governo a roubar na reforma, emoções à flor
da pele, hum! Tenho de encontrar soluções rapidamente. Esta pausa forçada na
noite fria e húmida não é agradável, ainda por cima, aquela mosca não larga
andando lá por cima naquele seu zun zun, tira-me do sério e do meu silêncio
sossegado, tenho de arrumar com ela antes de me deitar. As moscas são sempre a
mesma coisa, a merda muda, mas elas ficam sempre, ao contrário dos governos que
são todos diferentes e a merda é sempre a mesma, não muda... Não me vou deitar
sem lhe tirar a tosse, vai perder o zun zun de vez. Só faltava que na minha
casa também fosse vítima de “bullying”, vais morrer sacana! Aos gajos que
mandam, só votando contra poderei afastá-los do poleiro, mas contigo, vai ser
já agora.
Como tudo o que acontece, na vida sempre haverá dois pontos de vista
diferentes. Não imagino o que ele estará a pensar, tenho de estar atenta, pode
sobrar para mim a solução para o seu estado de espírito. Cada vez escasseia
mais a comida cá em casa, e não é bom sinal, e quando vê no ecrã da TV aqueles
grupos de pessoas bem vestidas com uns cartazes na mão, fica
agitado...cheira-me a esturro. Eu não faço ideia do que é aquilo, mas o homem
perde a postura e agita-se sempre que aquelas imagens aparecem...levanta-se
bruscamente e fica vociferar sozinho e mexer-se, ai fujo a sete pés, não vá
sobrar para mim.
— Aquela ali, anda a brincar
comigo, parece o Passos provocando o Zé, obrigando-o a apertar o cinto, está
mesmo à espera que eu lhe dê uma palmada para desaparecer.
Olha para o que me deu, estar aqui a magicar na vida e a pensar o que farei à
puta da mosca que me está a tirar do sério.
dc