domingo, 9 de junho de 2019

Sombras


As sombras na memória perseguem-me. Escolho fugir do sol, ou caminhar na noite escura para que não me incomodem, mas elas não me deixam. Adormeço e elas estão lá, mal me apercebo ali estão elas povoando o meu pensar. Abro os olhos tentando fugir delas, bebendo água, na tentativa de as afogar, ou que vão no arrastamento de engolir. Persistem, não falam, mas persistem como imagens de breu, tirando-me a hipótese do azul claro do céu, das cores do arco-íris, da paz que desenha o voo da pomba, dos cheiros que me levariam para outros lugares. Como se a ceifeira tivesse chegado mais cedo, ao desumanizar as certezas, retirar-me das crenças e afogar-me no visco lamacento da indefinição. As palavras são dela, escrevem para me provar que eu não existo. Eu sou a sombra das sombras, são elas que me dão um pequeno espaço na sua existência. Vezes sem conta, apercebo-me do som das palavras, olho-me no espelho, mas não vejo o mover dos lábios, são elas falando entre si, fazendo humor com a minha incapacidade de proibir-lhes existência. Existo como desenho num vidro transparente, no qual é necessário soprar o vapor quente, para que se leia o que nele existe. Sei que esperas, que te dê um sinal, de que estou algures esperando por ti, na realidade será uma espera sem tempo, as sombras tornam pesados os passos e agarram-me a um lugar sem passado nem presente.

dc


quinta-feira, 6 de junho de 2019

Eles falam, falam...

Na verdade, pensei-te sempre, alguém perto de mim, querendo, abraçando, desejando assegurar o meu querer-te na força do teu, em laços únicos que faziam a vida a dois prevalecer no correr dos tempos. Embalaste os meus pensamentos, tempos infinitos, em regressos e começos inesperados, que se desfaziam na espera e no vazio do tempo. É uma espécie de maldade que fazemos a nós próprios, ao inventar um estereótipo do que será o amor das nossas vidas. Quando a realidade o desmente, passamos a ver tudo com defeito. Nem sempre fomos assim, em algum tempo, fomos livres e amamos longe desse pensamento, mas depois quebrou-se trazendo o desconcerto a desilusão o fracasso. Nestas horas que se desenrolam fazendo os dias, a certo momento, julgo descobrir que me gosto o suficiente para não acatar os conceitos e as razões daquilo que os outros dizem ser a base do amor. Eles confundem, como eu fiz, o desejo com a realidade desse sentimento, difícil de identificar ou explicar por palavras. Como diz o outro: Eles falam, falam, mas não dizem nada. Amamos porque amamos, ponto. Nada há explicar ou justificar. Hoje é difícil soltar-me de ti, deixar que vás definitivamente de dentro mim, mas terá que ser. O caminho a seguir, é esquecer que és o “amor” que eu gostaria de ter, e não o “amor” em si que tu és. 



dc


terça-feira, 28 de maio de 2019

Uma estória de Maio


O mês de Maio ainda não fechou e a estória tem de ser contada, com o prazer das flores e temperaturas amenas da Primavera.
Sabia que ela nem sempre o lia, ou queria saber da sua opinião, ou até o seus quereres, mas ele não conseguia parar de a observar e esperar tranquilamente que ela reparasse em si, enquanto ia registando mentalmente a leitura corporal, ligada às emoções. Nem sempre os seus olhos brilhavam de felicidade. A beleza do seu rosto mantinha-se intacta, fosse na alegria ou tristeza, o que se alterava era a alma que ele assumia, no trejeito dos lábios, no brilho e nas ruguinhas em volta dos seus olhos. O corpo também se manifestava, quando a emoção e a alegria imperavam, no correr dos dias. Ficando solto descontraído, com gestos envolventes, maviosos, de anca agitada no caminhar, braços e mãos que pareciam querer abraçar e acarinhar. Quando a tristeza ou infortúnio a visitavam tudo isto perdia, a espontaneidade, os braços e as mãos gesticulavam, os dedos esticados como se fossem garras, uma tensão corporal evidente na rigidez que manifestava. Tudo isso se passava, e ela ausente, envolvida no seu mundo, longe de reparar nele. Tantas vezes ele a fitara intensamente, descaradamente, esperando um leve sorriso, um brilho diferente nos olhos, um trejeito na boca em forma de sorriso, algo que o fizesse acreditar que reparara nele, mas nada, para ela, ele era transparente, era como se não existisse.
Como se pode amar alguém daquela maneira, só lhe conhecendo a parte física o invólucro que é o seu corpo? Nunca ouvira a sua voz e só lhe pressentia a gargalhada que, de onde em onde, ela distribuía pelos que viviam o privilégio de conviver com ela.
Não esmoreceu nunca a vontade, um dia, uma qualquer circunstância os colocaria frente a frente. A vida tem razões, que a razão desconhece e factos inesperados acontecem. Um tropeção, um desequilíbrio no caminhar, colocou o braço dele, como única forma de evitar a queda. Tal proximidade obrigou-a reparar nele, na mensagem dos olhos que a observavam, na firmeza do braço que a suportava, na gentileza da mão que se lhe oferecia. A voz do, obrigada, e o sorriso que se lhe seguiu, foram o prelúdio de uma descoberta que se manteve durante largos anos.

dc

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Sombras e reflexos


Será que fizeram tudo o que era necessário para defender o que tinham. Em que ponto do, nós, a preocupação foi o eu? Se ambos estavam bem porque temeram o fracasso, o medo de falhar? Seria por ambos terem um passado que falhou? Será que falharam já nessa altura pela sua fraqueza de serem pessoas com o eu acima de toda a sua vivência em comum? Arriscaram anos, no passado, na relação que tiveram, sempre procurando salvá-la e não tiveram coragem de lutar pelo que agora tinham. Cada um sofrendo com separação no passado, temiam o futuro, presos ao pesadelo vivido, para fazer do presente o pesadelo de não viver.
Arrastando-se com o fracasso às costas e dele não abrindo mão, fecham a porta a um novo olhar, a novos conhecimentos e experiências, perdendo de viver o presente com sangue na guelra e a vontade de voltarem a ser pessoa, com direito de amar. Por vezes, justificam-se com os filhos, outras com a distância e muitos momentos pela parte económica, no entanto, sozinhos acabavam por ultrapassar montanhas de problemas mais difíceis. Cedem de si, pelo amor aos outros e não ao seu. Perdem o tempo que não vivem, sem terem hipótese de recuperar e própria alegria de viver e serem felizes.

dc

domingo, 19 de maio de 2019

Duas gotas



Nem muito bonita nem muito feia, lábios desenhados olhos expressivos, um corpo de desenho feminino comum, nem alta nem baixa, média em tudo quanto designa o aspecto físico. Ele de igual modo semelhante a ela como espécime masculino.
Adoravam conversar de tudo e nada, desde a profissão à política, passando pelas artes e conversa corriqueira de café. As diferenças esvaziavam-se, nesse acalorado conversar, sem que nenhum quisesse ficar com a primazia da opinião. As tarefas divididas, na casa comum, os tempos ocupados sem perda de individualidade, respeitando-se os silêncios quando necessários. No amor se entendiam, sem escolha de lugar especial ou posição, nada se impunha tudo acontecia fruto de entendimento, de olhares sorrisos, palavras. Eram um casal, não tinham estabelecido prazos ou “contratos”, tudo fluía de, per si. Na realidade, eram como duas gotas de água escorrendo na superfície de vidro da janela, que convergiram em determinado ponto da descida e continuavam juntas no seu deslizar, sem estabelecer quando parariam ou se estiolariam pelo tempo. Bem viver assim é bom e às vezes acontece.


dc

sábado, 18 de maio de 2019

Teias do coração




Presos na teia que tece o coração, vivemos abraçados com a solda do amor, a carícia da palavra trazendo o gesto, os aromas referenciando dos corpos, o toque inteligente na superfície, que domina a profundeza das emoções liquefazendo desejos. Crescente o prazer de permanecer no mesmo espaço, vogando nas nuvens, mas solidificados e presos no sentimento de serem livres no desejo de ficar eternamente.

dc