domingo, 14 de junho de 2020

Basta ser domingo



Tudo se mantém entre o sonho e o pesadelo da realidade. Que importa quantos anos passem, quantas as caminhadas feitas sem destino, quantas as manhãs frias pela ausência, quantas noites escuras com breu de olhos abertos esperando sonos, quantos os silêncios com o olhar perdido nas paredes carregadas de livros e pinturas, quantas as flores cortadas ou árvores podadas? Nada. Tudo isso são coisas que não arredam o que sente dentro de si. Ficaram os cheiros, a pele tatuada pelo toque dos seus dedos e doçura dos seus beijos, o amor feito sem pressa, as idas e vindas quebrando tempo e distância trazendo o sorriso e brilho aos olhos; a paragem do tempo, sentados na beira rio junto à foz, olhando o morrer do dia na linha do mar. São memórias em tinta invisível que facilmente se revelam, desse mundo submerso entre o sonho e a realidade, como o facto de ser domingo.

A data não está marcada, os dois ainda não têm a sabedoria da natureza na rotina das estações do ano, ou do ciclo das marés. Um dia irá acontecer, mais cedo do que tarde, e nessa altura se saberá qual o fio condutor que mantém os espíritos ligados a essa chamada, estória de amor.


dc


quinta-feira, 4 de junho de 2020

Imagem insólita


O som peculiar alerta-me. A mensagem chegou na forma de imagem, trazendo largura ao pensamento, profundidade aos sentimentos, a dúbia tristeza perante a incapacidade de formular a pergunta certa, perante o espanto da novidade. Algumas palavras surgem num curto espaço de tempo e nelas se dividem as formalidades, escondendo a natureza mais profunda do que na realidade cada um pensa, ou sente. O significado do que motivou a acção e a interpretação da mesma, dificultam a franqueza das palavras, o medo de revelar as emoções, por precipitação do juízo de valor. Tão inesperado acontecimento, alterou o comum corrido das noites, e se transportou para o sonho, num fluido rio de fantasias, com direcção à foz para diluir os eus, na largura do mar e na ondulação das marés.
Apurar razões do acontecido, não faz sentido. Melhor será valorar o facto, pela oportunidade de rever nos traços da imagem, o lugar onde outrora dedos e lábios tocaram, juntando-lhes os sentimentos ainda latentes na memória. Ficar-se pelo prazer daqueles tempos em que tudo fazia sentido. As palavras e as pessoas marcam um momento, que nunca mais se repete. Apaga-se, ou renasce, em outro patamar fora do contexto do que lhe deu origem.


dc

domingo, 31 de maio de 2020

Erro de destinatário


A crueza da verdade chegou na mensagem. Engano no destinatário? Talvez. Um lapso de tempo, em que a memória nos atraiçoa e traz da escuridão à luz do dia, o verdadeiro sentir que o tempo escondia, debaixo das suas desculpas desarticuladas, confundindo as distâncias, vivendo num possível imaginário portal entre dois mundos. A frase era o reflexo do seu viver delirante, entre o experienciar da novidade e a rotina dos dias desse alguém que a habitava.
Ele, agora se apercebia, da razão daqueles sorrisos que nasciam e morriam de modo estranho, do olhar triste transcorrendo para além do espaço físico, como se dentro de si, de repente, a saudade batesse e lhe sufocasse o peito, afastando-a de quem a rodeava. Era evidente que procurava alongar-se no horizonte, para que nem o tacto, nem os cheiros traíssem a sua vontade de permanecer naquele lugar, mas mantendo o sentimento que lhe provocava a saudade. Como aparas sobejantes do limar das frases, ficavam os restos de um diálogo inacabado de palavras, cujo significado se perdia no labirinto das interrogações e perguntas que nunca chegaram a ser articuladas.
O tempo não se recupera, dar tempo não faz sentido. O apego é um sentimento doloroso, uma abnegação doentia do eu, em benefício, duma imitação barata de amor.  

dc

terça-feira, 19 de maio de 2020

Não me sujem a água


Eu sou pato não quero que me sujem a água, preciso dela para mergulhar o pescoço e depois coçar a plumagem. Quero a liberdade do rio, do lago, ou qualquer outro lugar onde exista um espelho de água, nela possa mergulhar e sentir as suas ondulações. Não me importa que o sol plante luz e sombra, conforme lhe ocorre, eu escolherei qual o momento de me passear. Os meus amigos patinham como eu, deixando um rasto de ondulação riscando a trajectória. Por vezes, quando cai uma folha junto de mim, que começa a navegar como um pequeno barco e deixo que ela vá, como eu, sulcando a própria vida e leve as "patices" que em mim, observou. Aqui neste pequeno ribeiro, onde agora me encontro, não existem reis nem governantes que me destinem rotas, aqui a minha natureza se revela, dentro duma outra que me envolve e me completa.
Há uma criança gargalhando algures tão feliz como eu, mexendo na água deliciando-se por sentir o desconhecido. Ela ainda não foi racionalizada, ainda é um céu infinito de intuição, não precisa descrever, ou explicar, por que razão a humidade, o frio da água e as ondulações, que as suas mãos provocam, a tornam feliz. Aquela criança está mais próxima de mim que dos seus, mas um dia vai-se racionalizar e esquecer a água como agora a sentiu. A gargalhada dela rompe o ar, os pássaros, e nós, começamos todos a falar ao mesmo tempo, quebrando o silêncio e o vazio envolvente. É um colectivo que quer falar, que quer comunicar, para que ela um dia sinta a diferença, entre o hoje sentido, e o futuro, em presente acontecendo.

dc


segunda-feira, 11 de maio de 2020

As flores resistem


Considerada frágil, ela reagiu contra todas as tentativas de esmagamento. Uma fura-vidas. Tiraram-lhe o sustento, na tentativa de a quebrarem. Gemendo e sofrendo, foi vivendo com precariedade, até ao dia em que ainda viva e jovem foi conviver com os mais idosos, lugar de verdadeiros apreciadores da sua beleza e capacidade. Embora através deles pudesse fazer um retrato do seu futuro, sentia que voltara à vida. Houve tempos em que à sua volta tudo foi cortado, e ela resistira, crescera, impondo a sua figura diáfana, com um sol vivo centrado no seu corpo. Um infinito esverdeado completava-a, lembrando, um farol para novas rotas sobre o mar. Ela resistira lutando, para ser presente, na vida dos outros que amava e a amavam. Quando a quiseram, como modernamente se faz, embalsama-la em cimento, ela resistiu e criou a sua brecha para respirar e hoje é um exemplo, de abnegação e força que encanta, uma amostra viva, de que até as flores resistem às vicissitudes da dureza das tempestades ou ao meio social onde habitam.

dc

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Perfis ténues


Angustiava a partida, na mesma dimensão da alegria da chegada. Um, na sombra de quem parte, ou chega, outro na visibilidade de quem faz a viagem. Ficam os cheiros, os desenhos ténues de perfis diferentes, que se fixam na pele da espera, de uma outra chegada ou partida. Não se permitiram, delimitar o tempo e a distância, ou o seu fim, deixaram-se escorrer nos carris do vai e vem, com medo de parar numa derradeira estação desabilitada, para interromper a sua viagem em comum. As viagens foram fechadas, seladas as contas, mantêm-se as imagens de perfil ténues, mas presentes como marca de água de um registo valioso.

dc

sábado, 2 de maio de 2020

Engradados


Espalham o óleo untoso do egoísmo e do individualismo, o prazer da superfície das coisas, materializando-as na vida, que regam de desejo e ambição desmedida do ter. Vão-nos automatizando, para sobrevivermos robots da sua máquina infernal de poder. Desequilibram, criam novos paradigmas, rotulam e dão-nos os grilhões modernos, que aceitamos pacificamente, sobre a camada da pele, para que ninguém fuja ao seu controlo. Antes de tudo acontecer, somos desabilitados das asas do raciocínio, da inteligência, dos valores. Alimentam e sustentam o medo que nos faz trabalhar para sobreviver o “cada um por si” sobre o seu domínio.
Engradados de forma indiferenciada, bonecos articulados de uma sociedade corrompida, acumulam-se uns sobres os outros, aceitando pacificamente da voz do mandante, os ditames das elites obscuras, que querem e se vão apoderando, das suas mentes e corpos, tornando-os bestas egoístas, carnais, do eu, antes dos outros. Preparam-nos um futuro, cada vez mais curto, no qual não seremos actores da sua escolha.

dc