sábado, 12 de setembro de 2020

Quando o tempo pára

Adorava que toda ela tivesse aquela cor, transparente, do mel. Apaixonara-se pelo seu rosto de olhos rasgados, de um preto profundo, e pelo seu cabelo negro, que no seu esvoaçar, lhe realçava as linhas das faces. A sua boca era carnuda de lábios rubros, entreaberta num sorriso ténue, descobrindo levemente a brancura dos seus dentes. Todo o seu corpo sinuoso insinuava grandes voos, os pés pequenos harmoniosos, apetecendo beijar, as mãos de dedos delicados, completando a palma da mão, sugeriam a seda e sinfonias de carícias. O ventre liso, desenhava e realçava as coxas roliças perfeitas, e um afrodisíaco odor, acicatado pelo desejo, que de si, trazia a promessa incalculável de sensualidade e prazer. A imagem permanecia, no disco rígido. O caminho faz-se caminhando. A realização dos sonhos faz-se, quando nos disponibilizamos para ultrapassar distâncias e continentes se necessário, para que, nos mistérios do “karma”, se encontrar aquele ser que povoa os nossos sonhos e insónias, de modo repetitivo, como se dum dom trazido desde o lugar de nascença, aquele lugar. Agora abraçados, desfilávamos falas, entrecortadas pela repetição dos gestos, que nos enleavam levando-nos cada vez mais longe na descoberta. O relógio deixara de contar o tempo, nada de mais importante havia para fazer se não aquele permanecer.

dc


segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Às vezes acontece


Deitada com as costas coladas ao chão, as lágrimas corriam do rosto humedecendo a parte da nuca. Brotavam como a fonte de um rio, corriam soltas, como se dirigissem para foz, na sua inevitável natureza. Seria espera, a ausência, a partida ou a chegada que nunca aconteciam. As razões eram tão profundas, bem dentro de si, que não encontrava a razão daquele chorar. Na realidade nem sabia porque se encontrava ali deitada, naquele chão de madeira tépida, nem se nisso havia algum objectivo. Pernas lassas, ligeiramente abertas, mãos sobre as coxas, o olhando o tecto, naquele efeito de vidro partido, que esquarteja a imagem, em múltiplos bocados. De fora chegavam os vários ruídos de ambiente pássaros, o guindaste da obra, o vozear longínquo de pessoas, tudo filtrado pela distância, fazendo-a mais só naquele chão. Teria de se levantar, não podia ficar ali eternamente naquele choro suave que a dominava. Pensava, mas não conseguia encontrar forças para o fazer. A lassidão tomava o seu corpo, parecia deixar-se ir, diluir-se naquele chão perdendo a sua forma, assumir ser um local onde os pés pisam. Seria mais uma vez chão de todas as coisas que não sabia a razão de acontecerem. Não sentiria, como o chão onde se deitava, só ficariam as marcas, umas mais profundas outras mais subtis, sem saber quem as fez, ou quantas vezes.
A coragem aconteceu, vindo do nada. Repentinamente, levantou-se, foi a correr ao espelho casa de banho, olhou-se nos olhos e viu uma chama lá no fundo que lhe dizia, pára de ser lamecha, agarra-te a vida, ao sonho, cria o teu objectivo e nada te poderá derrotar. Estás a ficar depressiva dizia-lhe o espelho. Esse teu chorar sem origem ou conhecimento, é a tua mente atraiçoando-te, a tua emoção esmagando a tua racionalidade. Veste-te do luxo da tua força e querer e vai-te à vida que a morte é certa. Encaixou um sorriso na boca, foi para debaixo do chuveiro deixar que água lavasse todas as lágrimas e dores se as havia. O dia ainda agora começara. Vive o dia como se não houvesse mais amanhãs.


dc

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Sem máscaras


A esplanada estava quase vazia, cumprindo a distância social com número reduzido de mesas. Acabara de tomar o café e saboreava, o seu gosto característico que ainda permanecia na boca, enquanto isso ia apreciando aquele espaço sem máscaras, repousando o corpo e a mente. Um beijo com sabor a café e sem máscaras, foi o mote para o que lhe surgiu da memória.
Nunca precisavam de muitas falas, os caminhos, muitos e variados, eram feitos com as mãos e as bocas que os sabiam todos de cor, não precisavam de mapa. Estavam, no entanto, disponíveis para a novidade, ou descobertas inesperadas. Nunca seguiam o mesmo ritmo, não gostavam de se repetir, do nada nascia o acontecer, sem dia ou hora marcada, começavam simplesmente a ferro e fogo até a bonança chegar. A bonança chegava com o ar carregado de diferentes cheiros, um brilho nos olhos, depois, as mãos se enlaçavam, e ficavam, ombro com ombro, num falar solto, até o murmúrio antecipar o adormecer, amo-te!


dc


domingo, 26 de julho de 2020

Ela ama o sol e o mar


 Ela falava adivinhando pensamentos. Um dia conhecera-o, mais de perto e com alguma intimidade, mas assustou-se com o que descobriu e fugiu. Prendeu o olhar debaixo dos óculos escuros que dominavam o rosto. Os lábios tinham perdido o sorriso e ficaram presos a uma linha inexpressiva. Ele ficou retido na paragem que a viu partir, sem ter a inteligência e sabedoria para desvendar a origem do acontecido. Talvez ela pensasse que ele seria o príncipe encantado, surgido do beijo, mas na realidade a magia não aconteceu, continuou sapo fora da história. Anos mais tarde, se confessou, sorrindo na serenidade dos dias, só, vivendo no seu timing, amando o mar, e o sol que não traía as suas expectativas, trazendo-lhe vida e alegria, mesmo quando as nuvens o mascaravam. Ela adorava acordar com o sol e o seu adormecer vermelho, quente, enchendo o céu repousando sobre o mar, abrindo a porta à lua que chegava. Adorava adormecer com a lua beijando-lhe o corpo e a brisa fresca que o sossegava. O outro não era o príncipe, mas não ficou sapo para sempre, era agora uma referência amiga com o qual as falas e a liberdade se expressavam, mantendo aberta a porta às histórias dos dias. Longa era distância, perto a apreciação do mar e o sol que a ambos fazia feliz.

dc

sábado, 18 de julho de 2020

Amor de Verão


Passava os dedos sobre a superfície das coxas generosas e suaves que delimitavam o começo do ventre e o abdómen que sem ser magro era liso e sem saliências inconvenientes dos descuidos estéticos, as marcas naturais da idade. Sua pernas eram duas colunas poderosas que suportavam o resto do seu corpo harmonizando todo o conjunto que fazia a sua bela figura de mulher. Sabia que ela não era só um corpo, por isso o encantavam os seus raciocínios lógicos, a sua cultura, a personalidade forte e a sua ternura, quando em conversa. Quantas vezes ele deitado de bruços sobre a cama, enquanto falava com voz baixa e pouco clara pelo sono e por não querer dizer demais, ela o escutava com um braço atravessado sobre as suas costas, enquanto da sua boca, saíam uns ligeiros murmúrios, intercalados por beijos roçados sobre a sua pele do ombro. Quase sempre resultava no descaminho voraz que interrompia a pacatez das falas.
Ela era a deliciosa surpresa, que surgira para interromper a sua solidão e vazio amoroso dos últimos anos da sua vida, enriquecendo-o com o seu amor fresco, sem a identificação dos anos pelo bilhete de identidade. Ele não era possuidor de grandes rendimentos, ela vivia do seu salário pouco generoso. A diferença de idades era algo acentuada, mas nada que os preocupasse, sabiam que o presente que viviam era doce e suficientemente forte, para que se pudesse dizer um dia com o destino traçado, “valeu a pena”.
Ele tantas vezes percorreu com um só dedo o contorno do seu corpo como se fizesse um desenho a lápis, que iniciava nos dedos de um dos pés e se prolongava por todo o seu corpo até ao outro lado, terminando da mesma forma, ao mesmo tempo que a sua boca acompanhava todo o seu percurso. Era uma espécie de tactear cego, como se quisesse fixar dentro de si a sua morfologia corporal. Ela, enquanto isso, ia falando em voz baixa, meio rouca que o enlouquecia. Tinha sempre estórias para contar, factos para relatar, desejos para realizar e ternura sem fim no seu expressar. Não havia momento escolhido para se descobrirem, qualquer lugar, ou momento, construía um beijo, um desejo e uma osmose de corpos e peles que se confundiam adentrado-se, com toda a alegria de um sonho que a cada etapa se realizava. Assim foi todo aquele Verão, como no Inverno que se seguiu e todas as estações, surgidas no correr dos anos.

Hoje estava novamente só. Contrariando a ordem natural das coisas, a morte antecipara a sua partida. No entanto, não era uma solidão incómoda, mas procurada. Sentia a sua ausência de facto e por vezes de forma dolorosa. Eles tinham-se dado tanto, um para o outro, um com o outro, que não faltavam memórias que preenchessem as lacunas, além dos afazeres diários sociais e de sobrevivência e as pausas para ler, ou escrever. No aproximar da noite, em especial, sempre se lembrava, de que mais vale amar por algum tempo alguém, mesmo que o sofrimento possa acontecer, do que nunca ter amado, com o mesmo prazer e alegria que com ela viveu. Tinham-lhe dito que os amores de Verão morrem com a Primavera, o seu, dela, tinha percorrido muitas estações do ano sem esmorecer até à sua partida. O vento leste traiu-me, trouxe o calor ao corpo e arrastou-me para esta saudade e desassossego para o qual as palavras não chegam.


dc

domingo, 12 de julho de 2020

A casa da ria



Construí-lhe os alicerces modelando-a a meu gosto, com a transparência das vidraças e aço na sua estrutura, dando a leveza necessária. Ficava junto da margem, mas plena sobre a cor turquesa das águas do rio de onde surgia. Era o lugar dos sonhos, onde construir futuros tinha a dinâmica de dois, na partilha comum das preferências. Ali onde os segredos não existiam e o único ruído, que queríamos ouvir, era o das nossas vozes dialogando urgências e o deslizar das águas. Não era uma casa de bonecas, era a casa dos sonhos, umas vezes varrida pela luz intensa que vinha com o sol do dia e o seu reflexo e, nas noites, com o luar desenhando a nudez dos corpos, no amplo quarto, com vista única do espelho de água e o horizonte infinito. Outras vezes a neblina como algodão-doce nos fazia levitar, deslizando sobre a superfície das águas rumo ao desconhecido. Mesmo quando a chuva ocorria, era como se nos banhássemos sem molhar o corpo, adoçando os beijos. Foi ali o primeiro momento de nos conheceremos, absorvendo a totalidade do espaço envolvente, nos conhecendo e reconhecendo, como se juntos toda a vida. Ainda hoje resiste entre o amontoado de quadros pintados, aquele, executado com a emoção do amor, em que se via ela pousando a sua cabeça sobre o seu ombro e o envolvia num abraço sem fim. Afinal um registo eternizado, dum sonho realizado, que os ligava naquela casa como se fossem o último pilar que, imprescindível, a sustinha sobre as águas.


dc



sexta-feira, 3 de julho de 2020

Além do espelho


Olhamos o espelho, vendo para além de nós. O rosto é somente a aparência onde nos fixamos estáticos, enquanto adentramos, nos nossos pensamentos e raciocínios. Não raro acontece acordarmos dessa letargia, com uma voz que chega lá de longe, como um eco, para nos dizer que estamos com bom aspecto, ou atrasados para um qualquer compromisso da nossa rotina. Penteamos o cabelo, passamos creme nas faces, ou borrifamos um pouco de água de colónia e de seguida uma vista de olhos à restante decoração de que nos vestimos para parecermos pessoas. Aquele momento fugaz de auto-observação em que nos detivemos, olhando o reflexo do rosto que não vimos, surgirá mais tarde, fazendo parte das nossas interrogações. Será regurgitado para a luz do dia, vivenciado como um filme do qual tentamos perceber as razões e as dúvidas que ocorrem da sua ficção. Se não observamos, atentos, os traços da face, não é possível que tenham sido as rugas, marcando o percurso dos aniversários decorridos, ou os cabelos brancos como número de identidade, porquê da razão do olhar invisível, abstracto, como que suspenso no tempo? Será uma defesa do nosso cérebro, ou a necessidade de deixar as rotinas? O que se passa em nós, que cada vez mais, com o evoluir dos anos, vamos tendo esta espécie de brancas temporárias, em que nos afastamos do que nos rodeia e nos deixamos tomar pela meditação, para além do lugar de estar? Talvez seja a ameaça à vida que hoje sentimos, este terror que nos colocam, da quarentena para a calamidade, numa maldade insana de nos fazer contar os passos, alargar as distâncias, e temer o respirar da vida, na crença de que só assim podemos existir, temendo, que nos coloca dentro da gaiola, sem a liberdade do voo, que nos faz perder o siso, nesse olhar que vai para além do espelho onde nada vemos.

dc