sexta-feira, 30 de agosto de 2019

As palavras fugiram de mim


As palavras fugiram de mim, lê-las na escrita dos outros é um incentivo, mas não resolve nem me traz a solução, para as razões dessa sua ausência, nem da minha incapacidade, para as apanhar e utilizar. Chamam-lhe “uma branca”, é possível que seja, ou talvez eu já não me entenda na forma de as utilizar, nem me faço entender perante os outros. Até pode ser burrice instalada no software da minha existência.

Talvez as palavras sintam o desperdício, de serem usadas por mim, repetindo-me na rotina dos desentendimentos que tenho em mim próprio quando as público. É possível que algumas vezes eu as tenha aplicado em textos intragáveis e elas se tenham sentido mal tratadas na sua leitura e interpretação. Na dura realidade, eu é que deixei de sentir a sua melodia, o gozo em as escarrapachar nos textos, contando estórias, abordando realidades, dando-lhes o ritmo, sonoridade e um sentido correspondente ao padrão de conhecimento de quem lê. Às vezes as palavras surgem-me em frases, que rapidamente anoto em guardanapos de papel, mas mais tarde surgem amarrotadas, tornando-se ininteligíveis estragando a sua leitura e entendimento. Muitas vezes, troco as letras, e olho para elas como se bem escritas. Já pensei se o Alzheimer atacou as minhas palavras e amassou a minha criatividade, restando no ar a repetição cabisbaixa do abanar da cabeça.
Neste texto, percebe-se do que falo, o terror de sentir que escrever neste momento é como se estivesse a arrancar um dente. Enfrento o espaço em branco escrevendo nele, palavras desgarradas, como se estivesse furiosamente a mastigar a uma pastilha elástica, na esperança de que se transforme em alimento comestível aos olhos de quem lê. Não sei qual o remédio para esta doença, que espero não se torne crónica. Para já, fico mascando o tempo, olhando sem ver, esperando que alguma ordem emocional traga o registo certo de elas voltarem ao meu convívio.

dc

terça-feira, 30 de julho de 2019

Amoramos

Sorriamos, olhando o entardecer, sentados num banco junto ao rio. As mãos faziam-se sentir com a suavidade dos dedos na pele do corpo. Sentíamos a diversidade dos cheiros, distintos, marca única de identidade que delimita o nós que somos; cheiros que se impregnam na pele e se colam na memória de um e do outro alimentando silêncios e vazios futuros. A ponte, na sua majestade, testemunha silenciosa da nossa presença, dava-nos a certeza do segredo, era o exemplo de ligação entre duas margens, entre duas visões diferentes de uma mesma natureza, tu e eu. Até as gaivotas, se atreviam coscuvilheiras a sondar a nossa presença, aproximando-se como que sabendo-nos tão envolvidos, incapazes de nos apercebermos delas. Tantas as vezes nos amoramos na conversa de fim de tarde. Partilhávamos pensamentos, desejos, e enfeitávamos a boca de sorrisos que desciam até ao fundo de nós. Um sorriso sempre nos afasta dos medos, alimenta os nossos olhares, traz a ânsia de viver com intensidade, de resistir há intempérie dos dias menos bons, de amar até ao infinito.

dc

terça-feira, 23 de julho de 2019

Ainda que sorrindo dói

Ainda que sorrindo, dói; ainda que se distanciando, dói; ainda que se embrulhando em livros e convívios de amigos, dói. Uma angústia que dói, a ausência do cheiro, do beijo e o sabor da boca, do abraço aconchegado, dói. Tudo dói nesta lembrança permanente que faz com que cada gesto, cada movimento se torne vivo e doloroso, até o esforço de tentar esquecer dói.
Encosta-se na almofada meditando, de acordo com os livros, ajudará a fugir da saudade, da dor das lembranças, ainda tão frescas, que agora são agulhas furando esse vazio que se instalou depois de seguirem caminhos inversos. Enquanto isso, adormece e, no sonho, corre em ruas de uma cidade constituída pelos muitos lugares, onde foi feliz, tentando refrear o veículo que não lhe obedece, e dói, não quer entrar nas vielas e ruas obscuras de outra cidade que flutua em si desde que o seu amor se foi. Não sente que as mudanças lhe obedeçam, desconfia, pensa em bruxas, em karmas em videntes, mas o sonho, esse é o pesadelo falando do que dói, esse seu deslizar parece fazer um relato dos acontecimentos, na procura dum caminho a seguir, ou um remédio para o que dói. Agita-se e acorda. Abre os olhos e não se lembra de como chegou aquele lugar. Sente uma certa leveza no corpo, meditar faz bem, pensa, desvia o olhar para mesa ao seu lado e a imagem dos dois abraçados ainda lá está. Tudo se desmorona novamente, agora o pesadelo volta a ser a sua realidade. Quanto tempo aguentará esses altos e baixos, que esgotam, que nos tornam depressivos, que nos afastam das tarefas do dia-a-dia, da vida com outros, que nos atiram para o silêncio vazio entre paredes. Olhei as mãos esgadanhadas pelo tempo, pensando se vale a pena continuar, se razão há para que o amor doa?


dc

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Tudo se dilui no tempo


Certamente já não te importas e, na prática, eu também não. Há silêncios que falam como palavras e dizem muito mais do que imagens. São silêncios que calam fundo, e nos vão enterrando as emoções no arquivo morto das memórias. É um tempo que se não recupera, e nem vale a pena tentar ligar os pontos e linhas com que se costuram as coisas que falam sobre nós. Tudo se diluiu como escrita na areia que o mar se encarrega de apagar com o desfazer da onda.
Agora estou sentado no Parque e, olhando por cima da copa das árvores, vejo os pássaros fazendo um bailado harmonioso contra o azul do céu. Será assim o meu começo de liberdade, criando o espaço dentro de mim para me abrir e voltar a sentir novas emoções? Diz-se, e escreve-se por aí, que o amor está em nós. Será? Eu acho que só se revela quando alguém o traz à evidência e nos acorda para ele, mas aí temos de estar disponíveis para o deixar adentrar e fazer a sua cama no nosso, eu. Enquanto isso não acontece talvez seja melhor ver os pássaros e viver e aprender com a liberdade.

dc

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Sem palavras (à toa)



Deixo que as palavras sejam donas, que respondam aos meus desejos, solto-as, como pássaros saindo da gaiola. Deixo sim que elas comandem as minhas vontades, que se assenhorem e sejam na ordem que entenderem. Trabalho, coragem, vontade, esforço, amor, felicidade, ternura, humanismo, memória, beijos, abraços, mulher, homem, família, alegrias, amizade, pátria, povo, lugar, espaço, tempo, natureza, animais, céu, sol, terra, água, mar, rio, casa, cor, arco-íris, cor de íris em olhos de vida. Não, não deixo que outras palavras, essas outras que também existem e magoam, tenham lugar, mesmo sabendo que são tão reais que eriçam a superfície da pele, que imobilizam, que têm tonalidades graves, estridentes e que são dominadas por cores pardas, e muito menos gosto quando são em língua cuja origem desconheço.
Enquanto eu puder, decido o quanto quero ouvir, o que quero ouvir, quem me pode dizer, e como encerrar as portas de entrada, ao que não quero ler, que não contribui para o meu bem-estar e daqueles que, próximos, me são tão necessários como a alimento de sobrevivência.


dc

domingo, 7 de julho de 2019

Um pedaço de sábado



Assim foi naquele pedaço de sábado. Os amigos com o seu vozear eram a música de fundo. O seu olhar perdia-se no barco que ao longe que cruzava o mar entre a ligeira neblina que desenhava o horizonte distante. Aquele lugar, tinha sido escolhido de forma quase instintiva. Ali estava ela sentada na esplanada, onde pedaços de memória ainda viviam. De vez em quando, atentava na conversa, mas depois lá se perdia ela, nos meandros de outras conversas, de outros momentos bem mais felizes, do que aqueles de hoje adentrados de silêncio e vazio. É bom quando nos atrevemos a poluir os nossos lugares, até então sagrados, com outras visitas e momentos. O que foi já não tem validade, é mais fácil assim ir esquecendo, quem sabe possa ocorrer algo mais doce e belo, que possa levar para longe de si aquela mágoa, talvez até aquele barco ao longe a leve de mansinho e o coração reste sossegado, quem sabe?

dc

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Quatro tempos num só momento


Levantei a cabeça e vi-lhe o sorriso, esperando-me na saudação do reencontro, as palavras, ficaram-me enroladas, a língua perdeu-se na boca que não era minha.
Alterara o percurso, sem saber o porquê, os passos adivinharam a hora e o lugar. Ela de pé, debruando o topo do portão com os braços, estava em espera sem o pensar.
No negro que a vestia, pela primeira vez lhe observei o corpo, fora preciso um acontecimento nefasto, para me deixar meio absorto.
Ah! se as palavras me saíssem da boca, com a intensidade do seu olhar eu faria uma declaração de amor, que tragasse o céu e alongasse a vida até ao mar.

dc