domingo, 27 de setembro de 2020

Fim de Tarde


Os dias passam na sua rotina, do acordar ao deitar, sem curvas e contracurvas, tudo sem alma, mesmo o sol sorrindo, ou a chuva caindo, esteja calor ou frio, nada se altera, assim se esgotam as semanas, meses e as estações do ano. Nesse correr da vida, as pessoas passam, as conversas não distraem, as presenças tornam-se inócuas, não me trazem a frescura do teu abraço, o cheiro de ti, a presença do teu corpo, a doçura dos teus beijos. Faltam-me os teus gracejos refinados pela ironia, e as falas certas com que me rebatias as ideias e propostas, procurando ir mais fundo adentrado em nós. É uma saudade tamanha, da qual me apego em silêncio, como se fosse o ar necessário para respirar. Fico de olhar preso, naquele longe sem horizonte, como se a resposta fosse possível vinda do infinito, inconsciente de que as coisas têm o seu fim e a morte é inevitável.

 

dc


sábado, 19 de setembro de 2020

Afinal o morto continua vivo

"As crises nos acordam para as coisas boas que não percebemos."
Robin Williams num dos seus filmes

Fizeram-lhe o funeral antecipado e, como se isso fosse coisa pouca, ostracizaram-no antes da morte, para que esta fosse mais fácil de acontecer. De propósito? Não, mas com a mesma inconsciência e prática, lhes é proposta por esta sociedade autoritária, dita moderna e democrática, em que o umbigo de cada um maior que a humanidade da qual fazem parte, num apelo insano ao individualismo ao “nós” antes do que tudo. Resistiu como sempre fez. Muitos silêncios, muitos vazios dentro desses silêncios foram necessários, e tempo para muitas coisas dentro de si, mudaram, para encarar a solidão como algo apetecível e lhe dar espaço próprio para pensar, para ouvir o que não se faz presente, reforçar, ou reajustar a sua identidade, com os valores e com evolução da vivência. Foi tempo de analisar possíveis erros e esboçar novos desafios e objectivos. Encontrar pequenas pontas perdidas, na manta de retalhos dos sentimentos e emoções, descobrir novos elos de ligação. Afinal o morto continua vivo, não para assustar nas visitas às campas dos cemitérios, mas para sorrir ao mar, ao sol e gozar o tempo de liberdade numa esplanada "desmascarada" de um qualquer café.

 

dc

sábado, 12 de setembro de 2020

Quando o tempo pára

Adorava que toda ela tivesse aquela cor, transparente, do mel. Apaixonara-se pelo seu rosto de olhos rasgados, de um preto profundo, e pelo seu cabelo negro, que no seu esvoaçar, lhe realçava as linhas das faces. A sua boca era carnuda de lábios rubros, entreaberta num sorriso ténue, descobrindo levemente a brancura dos seus dentes. Todo o seu corpo sinuoso insinuava grandes voos, os pés pequenos harmoniosos, apetecendo beijar, as mãos de dedos delicados, completando a palma da mão, sugeriam a seda e sinfonias de carícias. O ventre liso, desenhava e realçava as coxas roliças perfeitas, e um afrodisíaco odor, acicatado pelo desejo, que de si, trazia a promessa incalculável de sensualidade e prazer. A imagem permanecia, no disco rígido. O caminho faz-se caminhando. A realização dos sonhos faz-se, quando nos disponibilizamos para ultrapassar distâncias e continentes se necessário, para que, nos mistérios do “karma”, se encontrar aquele ser que povoa os nossos sonhos e insónias, de modo repetitivo, como se dum dom trazido desde o lugar de nascença, aquele lugar. Agora abraçados, desfilávamos falas, entrecortadas pela repetição dos gestos, que nos enleavam levando-nos cada vez mais longe na descoberta. O relógio deixara de contar o tempo, nada de mais importante havia para fazer se não aquele permanecer.

dc


segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Às vezes acontece


Deitada com as costas coladas ao chão, as lágrimas corriam do rosto humedecendo a parte da nuca. Brotavam como a fonte de um rio, corriam soltas, como se dirigissem para foz, na sua inevitável natureza. Seria espera, a ausência, a partida ou a chegada que nunca aconteciam. As razões eram tão profundas, bem dentro de si, que não encontrava a razão daquele chorar. Na realidade nem sabia porque se encontrava ali deitada, naquele chão de madeira tépida, nem se nisso havia algum objectivo. Pernas lassas, ligeiramente abertas, mãos sobre as coxas, o olhando o tecto, naquele efeito de vidro partido, que esquarteja a imagem, em múltiplos bocados. De fora chegavam os vários ruídos de ambiente pássaros, o guindaste da obra, o vozear longínquo de pessoas, tudo filtrado pela distância, fazendo-a mais só naquele chão. Teria de se levantar, não podia ficar ali eternamente naquele choro suave que a dominava. Pensava, mas não conseguia encontrar forças para o fazer. A lassidão tomava o seu corpo, parecia deixar-se ir, diluir-se naquele chão perdendo a sua forma, assumir ser um local onde os pés pisam. Seria mais uma vez chão de todas as coisas que não sabia a razão de acontecerem. Não sentiria, como o chão onde se deitava, só ficariam as marcas, umas mais profundas outras mais subtis, sem saber quem as fez, ou quantas vezes.
A coragem aconteceu, vindo do nada. Repentinamente, levantou-se, foi a correr ao espelho casa de banho, olhou-se nos olhos e viu uma chama lá no fundo que lhe dizia, pára de ser lamecha, agarra-te a vida, ao sonho, cria o teu objectivo e nada te poderá derrotar. Estás a ficar depressiva dizia-lhe o espelho. Esse teu chorar sem origem ou conhecimento, é a tua mente atraiçoando-te, a tua emoção esmagando a tua racionalidade. Veste-te do luxo da tua força e querer e vai-te à vida que a morte é certa. Encaixou um sorriso na boca, foi para debaixo do chuveiro deixar que água lavasse todas as lágrimas e dores se as havia. O dia ainda agora começara. Vive o dia como se não houvesse mais amanhãs.


dc

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Sem máscaras


A esplanada estava quase vazia, cumprindo a distância social com número reduzido de mesas. Acabara de tomar o café e saboreava, o seu gosto característico que ainda permanecia na boca, enquanto isso ia apreciando aquele espaço sem máscaras, repousando o corpo e a mente. Um beijo com sabor a café e sem máscaras, foi o mote para o que lhe surgiu da memória.
Nunca precisavam de muitas falas, os caminhos, muitos e variados, eram feitos com as mãos e as bocas que os sabiam todos de cor, não precisavam de mapa. Estavam, no entanto, disponíveis para a novidade, ou descobertas inesperadas. Nunca seguiam o mesmo ritmo, não gostavam de se repetir, do nada nascia o acontecer, sem dia ou hora marcada, começavam simplesmente a ferro e fogo até a bonança chegar. A bonança chegava com o ar carregado de diferentes cheiros, um brilho nos olhos, depois, as mãos se enlaçavam, e ficavam, ombro com ombro, num falar solto, até o murmúrio antecipar o adormecer, amo-te!


dc


domingo, 26 de julho de 2020

Ela ama o sol e o mar


 Ela falava adivinhando pensamentos. Um dia conhecera-o, mais de perto e com alguma intimidade, mas assustou-se com o que descobriu e fugiu. Prendeu o olhar debaixo dos óculos escuros que dominavam o rosto. Os lábios tinham perdido o sorriso e ficaram presos a uma linha inexpressiva. Ele ficou retido na paragem que a viu partir, sem ter a inteligência e sabedoria para desvendar a origem do acontecido. Talvez ela pensasse que ele seria o príncipe encantado, surgido do beijo, mas na realidade a magia não aconteceu, continuou sapo fora da história. Anos mais tarde, se confessou, sorrindo na serenidade dos dias, só, vivendo no seu timing, amando o mar, e o sol que não traía as suas expectativas, trazendo-lhe vida e alegria, mesmo quando as nuvens o mascaravam. Ela adorava acordar com o sol e o seu adormecer vermelho, quente, enchendo o céu repousando sobre o mar, abrindo a porta à lua que chegava. Adorava adormecer com a lua beijando-lhe o corpo e a brisa fresca que o sossegava. O outro não era o príncipe, mas não ficou sapo para sempre, era agora uma referência amiga com o qual as falas e a liberdade se expressavam, mantendo aberta a porta às histórias dos dias. Longa era distância, perto a apreciação do mar e o sol que a ambos fazia feliz.

dc

sábado, 18 de julho de 2020

Amor de Verão


Passava os dedos sobre a superfície das coxas generosas e suaves que delimitavam o começo do ventre e o abdómen que sem ser magro era liso e sem saliências inconvenientes dos descuidos estéticos, as marcas naturais da idade. Sua pernas eram duas colunas poderosas que suportavam o resto do seu corpo harmonizando todo o conjunto que fazia a sua bela figura de mulher. Sabia que ela não era só um corpo, por isso o encantavam os seus raciocínios lógicos, a sua cultura, a personalidade forte e a sua ternura, quando em conversa. Quantas vezes ele deitado de bruços sobre a cama, enquanto falava com voz baixa e pouco clara pelo sono e por não querer dizer demais, ela o escutava com um braço atravessado sobre as suas costas, enquanto da sua boca, saíam uns ligeiros murmúrios, intercalados por beijos roçados sobre a sua pele do ombro. Quase sempre resultava no descaminho voraz que interrompia a pacatez das falas.
Ela era a deliciosa surpresa, que surgira para interromper a sua solidão e vazio amoroso dos últimos anos da sua vida, enriquecendo-o com o seu amor fresco, sem a identificação dos anos pelo bilhete de identidade. Ele não era possuidor de grandes rendimentos, ela vivia do seu salário pouco generoso. A diferença de idades era algo acentuada, mas nada que os preocupasse, sabiam que o presente que viviam era doce e suficientemente forte, para que se pudesse dizer um dia com o destino traçado, “valeu a pena”.
Ele tantas vezes percorreu com um só dedo o contorno do seu corpo como se fizesse um desenho a lápis, que iniciava nos dedos de um dos pés e se prolongava por todo o seu corpo até ao outro lado, terminando da mesma forma, ao mesmo tempo que a sua boca acompanhava todo o seu percurso. Era uma espécie de tactear cego, como se quisesse fixar dentro de si a sua morfologia corporal. Ela, enquanto isso, ia falando em voz baixa, meio rouca que o enlouquecia. Tinha sempre estórias para contar, factos para relatar, desejos para realizar e ternura sem fim no seu expressar. Não havia momento escolhido para se descobrirem, qualquer lugar, ou momento, construía um beijo, um desejo e uma osmose de corpos e peles que se confundiam adentrado-se, com toda a alegria de um sonho que a cada etapa se realizava. Assim foi todo aquele Verão, como no Inverno que se seguiu e todas as estações, surgidas no correr dos anos.

Hoje estava novamente só. Contrariando a ordem natural das coisas, a morte antecipara a sua partida. No entanto, não era uma solidão incómoda, mas procurada. Sentia a sua ausência de facto e por vezes de forma dolorosa. Eles tinham-se dado tanto, um para o outro, um com o outro, que não faltavam memórias que preenchessem as lacunas, além dos afazeres diários sociais e de sobrevivência e as pausas para ler, ou escrever. No aproximar da noite, em especial, sempre se lembrava, de que mais vale amar por algum tempo alguém, mesmo que o sofrimento possa acontecer, do que nunca ter amado, com o mesmo prazer e alegria que com ela viveu. Tinham-lhe dito que os amores de Verão morrem com a Primavera, o seu, dela, tinha percorrido muitas estações do ano sem esmorecer até à sua partida. O vento leste traiu-me, trouxe o calor ao corpo e arrastou-me para esta saudade e desassossego para o qual as palavras não chegam.


dc