sexta-feira, 29 de julho de 2022

"Ver" com os dedos

 

Tocou a superfície fria, lisa, acetinada, sentia-lhe as formas arredondadas, o volume dos lábios, as reentrâncias do cabelo e dos olhos. Enquanto isso, a sua voz ia relatando, o que sentia na polpa dos dedos. O mármore branco, falava dum mundo com cores. A cada peça tocada, sentia-se-lhe a vibração na voz, tal era a forma intensa com que descrevia cada pormenor e o seu significado: que rosto tão suave! Que boca tão perfeita! Oh! Que rosto tão redondinho, é um menino!? Como é possível esculpir tal beleza? Rosa, invisual desde criança, agora já adulta, naquele momento, apreciava um busto de criança. A sua descrição pormenorizada e emocionada, era o retrato fiel do que eu via, seu acompanhante, que com mais alguns alunos do curso de pintura, voluntariamente nos dispuséramos para aquela visita guiada, para invisuais, no Museu do Escultor Teixeira Lopes. Foi um sábado memorável, uma das mais enriquecedoras experiências para nós, jovens, que queríamos aprender a arte de esculpir e pintar. Percebi aí, que para ser um artista, teria de possuir uma leitura e sensibilidade para além do visível. Aprendemos, que na ponta dos dedos, havia mais sensibilidade e percepção à flor da pele, do que nós de olhos abertos, sem a arte, de saber tocar. Se para ela, um sentido não existia, todos os outros estavam bem mais latentes e enriquecidos. Quase apetecia dizer, que deveríamos aprender de olhos fechados, antes de nos atrevermos a mais.

 

dc


domingo, 24 de julho de 2022

É bom não ignorar


Ignorar quem nos ignora, é fazer prevalecer o respeito por nós próprios. É um caso para registar, quando alguém passa por nós, neste rodízio da vida, com ar compenetrado, olhar alongado na distância, quase roçando o nosso corpo, naquele ignorar “involuntário”. É bom não ignorar quem nos ignora, ou tenta passar despercebido, mesmo quando passa pela nossa frente e o resto do mundo estivesse para além das nossas costas. Quem nos ignora, informa quanto à sua identidade e caracteriza a sua tipologia como pessoa. Não deve passar em branco, àquele que é ignorado, a conduta do outro. O ignorar desse outro, pode ser uma espécie de provocação, que muitas vezes tem um efeito contrário. Aquele que em mim não repara, quer que eu fique atento à sua visibilidade, quando sou invisível aos seus olhos. A resposta ao seu ignorar, é nos fazermos notados, saudando, sorrindo, enfrentando, questionar quem não quer ser questionado e queria fazer-nos ignorados, depois, depois rodar, dando de costas, caminhando para um outro lugar, onde o cheiro da falta de ética não tresande.

dc


terça-feira, 12 de julho de 2022

Amo o mar

Imenso o verde-azul, que adentra nos meus olhos, é, talvez, a fala da origem que me toca a alma. Ondas sonoras e de massa líquida, surgindo das profundezas, misturam-se com o piar estridente das gaivotas, que vão observando e aflorando a superfície com voos rasantes, numa conversa celestial com os meus sentidos. Vindos do mar, somos preenchidos por uma massa de água, formatada em design único, tornados, talvez, pensantes perdidos das guelras, da suavidade da pele e do deslizar em ondulares movimentos. É bem possível que essa seja a razão que nos atrai e nos envolve, em horas de música repetitiva, seduzindo-nos a arriscar, avançando na procura do horizonte distante, como se agora fosse possível caminhar sobre as águas, ou não temer afundar-se dentro delas. Amo o mar, como o temo pela perigosa atracção da sua imensa solidão, ele faz-me correr riscos, sempre que alguma coisa me perturba o discernimento, é nele que procuro resposta. É com ele, que me permito meditar, para além das coisas comuns, para encontrar a paz que não sobeja no seio das gentes. Também nele posso extravasar uma, ou outra, pequena loucura restrita ao pensamento.


dc


quinta-feira, 7 de julho de 2022

Outras Guerras

 

Chorei, a guerra chegou à soleira da porta da loja. Nela estava deitado, um negro, um "sem-abrigo" coberto de farrapos e cartão, como um cão de guarda, impedindo o acesso. Funcionava como um “segurança”, um alarme humano. Um ser abandonado por todas as outras guerras, que ninguém chorou. Tiranos o despojaram da vida, com o mesmo abuso com que faziam a guerra, colocavam bombas em casa alheia e aliciavam com falsas promessas. Ali, na soleira da porta, estava a fotografia, de um país colonizado, à espera da libertação. Ali, estava o exemplo, de como a um povo, se lhe tira o orgulho e se reduz a restos. (Moçambique 1973)

dc


quarta-feira, 29 de junho de 2022

Qual a pergunta?

 


Tanto tempo passou desde o último beijo. Na gare, deu-se a partida para o outro lado do rio. Quando, dentro do carro, viu o comboio partir, sentiu os olhos embaciados, um frio no corpo e uma espécie de vazio interior. Aquele beijo, gesto de despedida, deixou na boca, o calor e vontade de querer mais. Do abraço, ficou no corpo a sensação e temor estranho, duma ida sem regresso. O perfume, sobrando na pele, se aliou aos gestos, vindo a fixar-se na memória. Seria a última vez que se veriam. Ainda hoje, estranhamente, não sabe qual deles escreveu as últimas linhas daquele romance. Daí, de vez em quando, fluindo no texto, repete-se no tema, na tentativa vã de que a qualquer momento encontrará a resposta à pergunta que não se quer calar.

 

dc


sexta-feira, 24 de junho de 2022

Meia palavra basta

Somos seres insatisfeitos. Quando atingimos um objectivo, para o qual lutamos tempo infindo, não temos capacidade para o viver, retro alimentar, sustentar, para que não seja descartado à primeira contrariedade. O objecto de desejo, após satisfeito, logo perde importância e partimos para outro, esquecendo que é necessário entender a dialéctica subjacente ao relacionamento humano. Os relacionamentos e as vivências são construidos com altos e baixos, com vitórias e derrotas, com emoções negativas e positivas, e, periodicamente, no surgir de momentos criativos, felizes, bordados de alegria e bem-estar. Necessário é, entender que a vida não é um mar de rosas, antes uma rede de acontecimentos, onde é preciso ter paciência, para enfrentar a queda, força para se reerguer e retomar o caminho, mesmo que os joelhos ainda estejam esmurrados e a escorrer sangue. Não há lugar para a lamecha, ou perda de tempo. É urgente saber coser com sabedoria, os rasgões, alisar o tecido comum que nos une, e vestirmos um novo fato, mais elástico, mais resistente e mais sólido. Para bom entendedor, meia palavra basta.

 

dc


terça-feira, 21 de junho de 2022

Incoerências

Ele cirandava pela rua escura de edifícios em ruínas. O miar do gato ao longe, e o ruído que chegava das casas, eram a sua única companhia. O ambiente era idêntico ao modo como estava vivendo, tudo lhe era pesado, ele, contra o mundo. Pensamento absurdo de quem não encontra solução para os seus próprios problemas e se agarra ao pessimismo. Ultimamente, era comum meter-se em batalhas de opiniões e discussões, onde quase sempre ficava sem norte e acabava por se empertigar, perdendo a razão, diluindo-a nas nuvens negras, que ele próprio gerava. Sabia, ter de procurar, fora dos sítios habituais, as respostas, mas acima de tudo, encontrar dentro de si, as perguntas. A rotina instalada, de esperar que as coisas aconteçam, não abria horizontes. Para se obter resultados, é necessário definir bem o que se procura, onde procurar e o que se deseja encontrar. Ali, ele cirandava, mas também, sentar-se na esplanada olhando as plantas do jardim, ou no areal, observando a ondulação mar, só por si, não resultaria, se efectivamente, não deixasse o espírito libertar-se e ter a coragem de arriscar. Ele queria ser alguém, que não se servisse das palavras de forma inadequada, para enganar as emoções, ou alimentar falsas ilusões, antes usá-las para alimentar sonhos e que o ajudassem a enfrentar a realidade. Este debate, permanente dentro de si, espelhando dúvidas, retirava-lhe o sossego, a incerteza no provir, era uma merda. Sim, sabia o que o comum das pessoas dizem: o importante é viver o presente, blá, blá, blá. Pois, está bem, e como se pára o pensamento, que circula à velocidade suprasónica, nessa busca, duma razão para este seu estado de espírito? A culpa será da economia, da pandemia, do medo viscoso que ainda domina as pessoas, no registo da distância física segura, na máscara que açaima, na surdez às evidências, ou na aceitação, da mentira de vozes variadas de sentido único, em todos os media, em especial os televisivos, que agora nesta guerra dos eslavos, se veio acentuar? É bem possível que seja tudo isso, que nos faz perder o norte, pôr em causa os valores com que fomos educados, de duvidar do que aprendemos, do nosso conhecimento, da nossa capacidade de lutar e amar, de expor das fraquezas humanas. Fraquezas estas, exploradas por técnicos e especialistas vários, no sentido de moldar quem somos, para sermos aquilo, que quem domina a sociedade, quer que sejamos. Será essa, a razão da angústia, da dificuldade de comunicar, de fechar o rosto, ou desabar em palavras incoerentes e perdidas de sentido? Possivelmente, a maioria dos outros, nunca entenderão esta “pescadinha de rabo na boca”, que o trouxe a esta rua escura, afastado do comum dos mortais, a sua maioria catequizados por leis e pressões, daqueles que na sombra exercem o poder.
Naquele, caminhar sem destino horas a fio, sem saber porquê e quando parar, a cada passada, surge uma reflexão, uma emoção, a visualização abstracta, o sonho, o desejo de que tudo mude sem que “perca o fio à meada” da existência. É uma busca incessante de perguntas para a resposta que não tem.

 

 

dc