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quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Sou a que sobra

 


Toda eu me desfazendo aos poucos, sou a que sobra deste mundo ensarilhado onde vivo. Todas partiram, algumas de envelhecimento precoce, sem se despedirem. Deixaram-me presa à estrutura enleada, que foi nosso lugar de estar, durante algum tempo. Resta-me esperar uma brisa, ou uma chuva, mais forte, para me soltar e cair na torrente que me levará algures, onde desaparecerei definitivamente, sem que alguém se lembre que já tive cor, forma, cheiro e vida. Breve foi a minha passagem. Julgo ter cumprido a minha missão, por vezes, aliada a muitas outras alegrei, refresquei almas, fui sombra, parceria de bons momentos, testemunha de enamoramentos e abrigo de intempéries. O fruto gerado, já não é mais meu, ou foi tomado por mãos ávidas, ou absorvido no tapete fofo, ou se diluiu em alimento de base. Podia ser humana estória, na verdade, é somente uma folha e seu possível(?) pensar.

 

dc


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

É bem possível

Sinto a saudade apertando. Tanto tempo passado e ainda corre nas veias a emoção como se tivesse sido ontem.

Repete-se a estória mentalmente. A tua silhueta na chegada, o calor do abraço com o cheiro de ti, o semi-sorriso, aquele brilho nos olhos e o beijo molhado. Tudo se vai repetindo com mais pormenores enriquecendo a estória. A saudade inunda por dentro, colocando nostalgia ao olhar que se perde no horizonte. São memórias que não apelam à repetição da estória, antes um reformular da experiência vivida, nesse outro começo, a pensar como seria um novo caminho, sem receios dos desafios, com mais verdade e mais capaz de ser futuro. É bem possível, que um novo começo, seja mais fácil para matar definitivamente a saudade e as memórias que magoam, e criar um novo registo intemporal.

 

 

dc


terça-feira, 23 de novembro de 2021

Vontade de viver o dia

 

As palavras eram insuficientes, para descreverem aquela iluminação solar que verrumava o céu de tons alaranjados, ou o contraste, das sombras que dominavam o chão de folhas caídas e os carros estacionados na orla dos passeios. Completando o cenário a gaivota estática se desenhava em contraluz, pousada num dos candeeiros, sensoriando no horizonte, o mar bravio donde fugira, por ausência de peixe gordo que a fizesse mergulhar. Ali, no topo do seu mundo, ela esperançava o lixo, que o contentor pudesse transbordar, buscando apaziguar a fome, concorrendo com os sem-abrigo, que brevemente sairiam dos colchões cartonados, instalados na soleira duma porta qualquer. Entretanto, ouve-se algures, o badalar das sete horas da manhã. O sono que ainda trazia no corpo, se esvaecia agora nas tonalidades, que lhe traziam espanto e arrimo, quebrando a rotina. Era o começo de um dia de outono sem temores de vento agreste, da chuva e gelo. Os olhos perdiam o horizonte, agarravam-se ao colorido que observavam e transportavam para dentro de si calor, alegria e vontade de viver o dia. Assim pensou: vale a pena aqui estar, neste soalho alcatroado, porque a dureza das coisas da vida, não retira a vivência das belezas do mundo.

dc


sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Sem rótulos de calendário



Aparecem, em pequenas gotas, na base dos olhos, é uma reacção, de extrema sensibilidade, aos estímulos exteriores que vão chegando, elas são o reflexo do peso que a idade começa a ter, cada dia que passa. Daí, se vai fechando, fugindo do conflito, da dor que dilacera a carne por dentro, para que a fraqueza não se assuma, mesmo quando decorre em causa alheia. Foge da embriaguez do jogo envolvente. Isola-se. Não permite o contágio dos outros sobre si próprio, acumulando mais dores e sofrimento, ao que já é o seu. A sua face, é um registo bem marcado dos anos, que nem sempre tiveram os melhores dias. Puseram-lhe, um rótulo, baseado na idade, esqueceram-se dos seus desejos e vontades. Procura, manter-se à parte dos outros, sejam amigos, ou filhos, que tentam comandar seu destino, julgando-o, pela data do calendário, não pela sua capacidade física e mental, muito menos pela sua independência, alegria de viver, e resistir ao fim anunciado. Eles nem imaginam quanta capacidade, física e mental; o quanto procura, mais saber, mais conhecimento, e disponibilidade de amar, desde que seja a causa certa, a pessoa certa, no momento certo, em que as dúvidas não existam e que o passado, que não acrescenta, seja só experiência reduzida a uma marca ténue, sem afectar o presente. Deixem-me viver, é o grito silencioso, sem rótulos de calendário, ou frases feitas, perante aqueles que se sentem actualizados e jovens, porque dominam as novas tecnologias, e vivem amarrados a um objecto de comunicação, em online permanente, que os isola e deixa à margem do mundo dos humanos.


dc

 

 

 

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Pedir um tempo


Sinto-me observado, por esse teu olhar indefinido, entre tristeza, dúvida e mistério, que cativa a minha atenção. Não direi que te amo, mas que te estou amando e, para mim, é suficiente. Nada é eterno, a não ser esse momento em que mutuamente nos observamos, como se quiséssemos “parar o tempo” e usufruirmos o estarmos ali, parados, olhando, falando, rindo e vivendo. Demos mais um passo, para além do dizer dos olhos e das palavras, afundámo-nos no conhecimento, no intencional descobrir dessa realidade palpável, no dia a dia de existir. No amadurecer, sem colorir, tudo se avalia com ponderação, mas a insegurança, arrecadada de outras estórias, faz temer o que poderá seguir-se e dá coragem ao apelo de um temporário distanciamento, ou um pedido de “desconto de tempo”. Como num jogo, no qual o treinador precisa de instruir a equipa. Mas sabes o tempo não pára, os movimentos dos astros, das estrelas, da órbita da terra e do relógio continuam. A distância, só por si, já confunde a forma de viver o tempo, este esfuma-se no percurso, e mais longe fica a solução. Diz-se muitas vezes: é preferível “perder” algum tempo, para ganhar no tempo futuro. Até que ponto, com a realidade a acontecer de forma prazerosa em que o tempo parece esfumar-se, que pedir um intervalo, não será um modo de colocar acidez naquilo que era doce, um descaminho para o silêncio, o vazio da ausência, e  nisso a destruição da fluidez do discurso das vontades e razões do desejo e do sentir. O rio não passa duas vezes debaixo da mesma ponte, por isso nada será como antes, e daí, pode resultar numa retoma com perda de tempo.

 

dc  

 

 

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Quem sabe

 

 

O vento forte adejava as bandeiras, azul, dourada e branca, designando as qualificações da praia. Deitado, de costas para o sol, numa duna próxima da rebentação do mar, esparramava-se na toalha colocada sobre areia e se esmaecia com o calor do sol. Ali, só uma leve brisa corria. O ruído do mar, que à duna chegava, trazia como música de fundo o piar agitado das gaivotas e o vozear das pessoas da praia, embalando-o no berço macio da inconsciência. Sentia o calor adentrando, no seu corpo, num prazer indecifrável, que o deixava incapaz de se mexer. Subitamente uma gargalhada cristalina, rompeu o ar envolvente, indo até ao mais fundo de si e o fez levantar a cabeça, curioso de saber, a origem. Uma jovem mulher, rosto de linhas suaves, cabelo preto e curto, corpo esbelto e moreno, precariamente tapado, por um biquíni preto, destacava-se na orla do mar, onde fazia corridas curtas, recuando, ou avançando, em volteios, brincando com ondas que se desfaziam no areal. Parecia uma criança, chegada do interior, vendo pela primeira vez o mar. Além dos atributos físicos, que despertavam a sua atenção, havia toda aquela alegria surpreendente. A sua gargalhada, foi um canto de sereia que o tirara da letargia. Foi uma resposta a uma pergunta que não fora formulada, e precisava ser encontrada. Há quanto tempo, não sentia tal jovialidade, que o fizesse capaz de fazer coisas inesperadas, como tocar às campainhas das portas e fugir, ou andar de baloiço. Um gesto infantil, como aquele que vira, que lhe retirasse do rosto a sisudez, quebrasse as rotinas e desse fluidez à criatividade, para bem da sanidade mental. Talvez se isso acontecesse, a sua timidez deixaria de ser um travão, ao relacionamento com as pessoas e facilitasse o caminho para uma ética de convivência, e, gazua para conversas frutuosas, prontas para libertar os sentimentos engaiolados. Quem sabe..

dc


sábado, 31 de julho de 2021

Entre lá e cá

 

Só nos apercebemos que a vida nos envelhece, quando acordamos para o dia com esperança de que o inusitado aconteça, quebre a rotina e que o lugar dos sonhamos se torne a realidade futura. Talvez até, que aquele sentimento, a que alguns, mais conhecedores, chamam de amor, surja num piscar de olhos, ou num sorriso vindo do nada, e o possamos sentir bem fundo. Ao olhar aquele corpo jovem com colar de pequenas pérolas, desenhando o colo do seu pescoço esguio, ele se pergunta, porque não eu, ser razão merecedora do seu olhar do seu desejo, da sua alegria e presença na sua vida? As pérolas que no peito baloiçam o hipnotizam, durante breve instante. Entre a vontade, o desejo e as subtilezas da esperança, adormeceu, inclinando a cabeça sobre o peito, ao jeito de corpo morto e tudo se confundiu numa espécie de limbo, sem que a materialidade se tornasse palpável.
As ondas vão-se espraiando no areal e o vento forte traz os borrifos, que caem sobre o seu corpo despertando-o. Absorto olha em volta, o areal está deserto, esfrega os olhos enquanto pensa que faço aqui só?

 

dc

 


domingo, 25 de julho de 2021

Noite de lua cheia


Chegou de mansinho, pé ante pé, dominando o fim do dia. Olhei o telhado, não havia gatos, nem uivavam os lobos, era mais uma lua dos namorados, que nas mesas se enredavam de braços, pernas se tocando e ameaças de beijo. Os sorrisos mais que muitos, e entre o lusco-fusco da mudança da luz derramavam segredos, em conversas, pé de orelha. Fiquei na dúvida, se seria a lua a razão do que acontecia, ou se a lua só vinha fechar o dia. O sol se fora e a noite ainda não escurecida, servia como espaço etéreo, para os felizes que adoçavam o seu mundo.

 

dc


sábado, 8 de maio de 2021

A ver o rio

 

 

Cheguei e passeei-me pela beira rio, depois sentei-me e fiquei silenciosamente, observando os praticantes de exercício físico de fim de semana e de todos os dias, os passeantes, a sós, de mão dada, ou lado a lado conversando, e os que simplesmente, como eu, sentados, eram companheiros de partilha daquelas imagens, que se sucediam como um filme aos nossos olhos. Quanto a mim, fui seduzido pelas crianças na sua algazarra alegre, brinquei com eles nos baloiços, pesquei à cana, voei com as gaivotas, naveguei com os pequenos barcos de recreio, vibrei com a brisa que vinha do mar, banhei-me de sol e alonguei-me no horizonte que me trazia a outra margem fervilhando de movimento e cor. Uma certa leveza se foi apoderando de mim, fazendo-me esquecer das máscaras incómodas, o medo que ainda se sente, nos olhos escondidos nas olheiras profundas, nos desvios de trajectória ao cruzar dos caminhos. Fui para onde o pensamento me quis levar e quase me esqueci, que o tempo passava e tinha de regressar. O espanto da situação deixa-nos aturdidos, não sabemos se vivemos, ou se sonhamos, temporariamente ficamos fora do chão e uma paz interior se instala e um prazer estranho nos faz sorrir e caminhar de regresso, ao velho mundo que habitamos, com energia renovada.

dc



segunda-feira, 22 de março de 2021

"House" e silêncio

A música “house” toca, entra pelos ouvidos alimentando o mutismo que dentro de mim habita. A boca não se abre para verbalizar, os olhos cerrados não comunicam, o corpo, estático pousado na cadeira, qual estátua e somente o cérebro livre disserta no seu labutar silencioso, impedindo que o vazio se instale. Parece um contra-senso, ouvir a música alta, ruidosa, e vivê-la como se me estivesse assenhorando de um silêncio específico. Interessante que quanto mais alto o som da música, maior o silêncio interior, libertando ainda mais o vulcão de pensamentos efeverescentes que borbulham nos limites da insanidade. O silêncio é uma vestimenta na qual me sinto confortável, em especial quando me isola das arestas cortantes da dor e das memórias da vida real.

 

dc


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Tal qual...


.... marionetas, presos nas teias globalistas, vamos sendo varridos por indiferenças várias, dos muitos que se ficam no comodismo da sobrevivência, bufando, denunciando, preferindo viver macaqueados, de açaime e espaço restrito. Como se os pássaros gostassem de viver em gaiolas e não trocassem um dia de liberdade por anos de prisão. Se o ar fosse causa de morte, de que valia a pena sobreviver, com escafandro permanente, de que valia morrer de tédio no isolamento de quatro paredes, na ausência do abraço fraterno, do amor? Na verdade, tudo isto, não é algo que tenhamos procurado, mas a satisfação da vontade e ambição de alguns “homens”, mexendo na natureza das coisas que deveriam estar quietas, para se apoderarem  dos bens da terra e dos viventes. A terra sempre responde ao descuido humano protegendo-se das agressões reagindo com força dos elementos arrasando tudo e todos. Os viventes, a quem lhe sacam o sangue e a liberdade, a resposta pode ser tardia, mas surgirá com a violência inesperada, cúmulo de fúria de quem se liberta das teias e emaranhados ramos que as tentam manietar. Nada será como dantes, mas fica o aviso, ou acordamos, perecendo alguns, para que muitos sobrevivam com dignidade, ou nos transformaremos em lixo tóxico de qual todos terão nojo de cheirar e pertencer.

dc


sábado, 30 de janeiro de 2021

COISAS DA VIDA

Olhei a cara enrugada e a sua pequenez, não pude deixar de lembrar-me, como somos insignificantes quando os anos nos tomam e somos envolvidos nas teias que a sociedade nos cria. Ficamos tolhidos, encolhidos, com receio de dizer, não, e fazermos, como sempre desejávamos, o nosso caminho seja ele qual for. Assoberbados pelas despesas a que não conseguimos dar resposta, devido às péssimas condições económicas, dependendo de uma reforma precária, obtida em idade avançada, tememos o pior. Não damos um passo, sem que sejam ponderadas todas as possibilidades e os diferentes ângulos de abordagem. E assim vai, correndo o tempo, sem pudermos abrir a porta a um amor, mesmo que tardio, que poderia tornar mais leve o fim do caminho. Quando a liberdade das obrigações diárias de dezenas de anos de trabalho se esfumam, em vez de nos atirarmos à descoberta de novos mundos e vivendo os momentos de ócio como bem nos apetece, os outros, sejam eles os filhos, os netos, ou amigos, nos vêm dizer que é importante contribuir ajudando, naquilo que afinal só lhes dá jeito a eles próprios e não a nós mesmos. E depois os governantes que sempre dizem preocupar-se com os idosos, aumentam o tempo de vida a trabalhar para quando sairmos para a reforma, estarmos de pés para a cova e o dinheiro amealhado ao longo dos anos fique na mão do estado.

dc

 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Sombra do que fomos


Suspenso, sem espera, o acaso determinará quando inevitavelmente partirá. Há tanto tempo caído, ninguém irá reparar dos tempos idos onde a sua presença era bem-vinda num qualquer espaço com vida. Agora, fica-se, vazio, amarfanhado por dentro e por fora. Trapos o envolvem, trapos  são os restos da sua memória. Desgrenhado, com a pele escurecida pela intempérie, o cheiro marcando o seu lugar de passagem, diz do alheamento do passar do outro mundo paralelo, do qual já não se sente parte. Pisado, nuns casos por aqueles que lutam pela sobrevivência na luta dos dias, e noutros casos pelos que tem prazer e mesquinhez de sentirem o pisar da sola do sapato, a pobre existência dos outros. Continuará fazendo cama nos portais das casas, enjornalado, ou encartonado, afugentando o frio e entupindo passagens. Se nos campos, debaixo de algum telheiro, irá observando as águas tombando do céu sobre as terras, sabendo que o renascer possivelmente já não será o seu. A sociedade desnuda de humanidade, não chorará a sua partida. Quando definitivamente ausente, os conviventes passantes, que tapam o nariz ao vê-lo nos seus andrajos, ficarão pedindo ao céu que não regresse um outro com uma nova roupagem e outras dores que não conhecem. Alguns, poucos, de pituitária menos sensível, mas de sensibilidade apurada, ainda se preocuparão em amenizar um pouco dos seus dias, não em datas festivas, porque, humanos solidários,  sentem como suas, as lágrimas, ou o descaminho, daquela gente que algures se perdeu na caminhada e não mais encontrou rumo. As roupas velhas com que os vestem, ou a comida que lhes oferecem não resolve, nem limpa consciências, sinaliza sim que se importam, mesmo que de mãos atadas se sintam incapazes de maior impulso. Dão um sinal de que é preciso mudar as consciências. Que o momento é de aprendizagem e não de medos, tempos de avaliar o quanto somos capazes de mudar e de fazer melhores escolhas para a vida que queremos para nós e para os outros.

dc

 


sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O risco sabia-lhe tão bem

Surgiu, quase do nada, exigindo atenção. Adentrou na sua vida como se dono e senhor do espaço, como se tivesse direitos conquistados, estabelecendo-se prioridade dentro do seu mundo. Para quê medir consequências? Mergulhou a fundo, quando ele veio ao seu encontro, mostrando-lhe o sorriso, a doçura da boca, manifestando o desejo sem calar a voz, marcando o ritmo das coisas, oferecendo-se, ao seu corpo há muito parado de emoções. Há muito se perdia nos seus escritos, nos rascunhos que nunca voltava a ler, nas pinturas que acabavam guardadas perdidas de outros olhares. Com ele fugia da cidade. Convidava-o a passear num dos seus lugares preferidos, onde existia um espelho de água, onde poderia ver o reflexo, do rosto que não o seu, como se um sonho os juntasse. Arriscava descobrir naqueles momentos, algo mais do que um corpo, mais do que a luz do sol, mais além da quietude das águas e dos barcos ancorados. Na esplanada da Ria, vogando no seu olhar, levava longe a imaginação, perspectivando para além do agora, enquanto o café quente e o pastel de nata não chegavam, para a celebração dum ritual, muito próprio. Rapidamente afastava as perguntas que chegavam à sua mente, temendo as respostas que poderiam afasta-la dele. Uma coisa sabia. Ele dera um safanão na sua rotina, na sua estrutura, e queria aproveitar o quanto possível, deixando-se ir, no enlevo e nas emoções, tão soterradas nos confins da memória. Avançou firme com a irracionalidade que as coisas do coração por vezes alimentam e que desde o primeiro dia dos seus encontros foram donas de si. Para quê avaliar o risco se lhe sabia tão bem? Era preferível viver intensamente um pequeno romance de que viver na paz podre à espera das certezas. Tudo o que começa, tem um fim, importante é viver e prolongar a jornada, para que o fim aconteça como um novo recomeço.

 

dc

 


domingo, 27 de setembro de 2020

Fim de Tarde


Os dias passam na sua rotina, do acordar ao deitar, sem curvas e contracurvas, tudo sem alma, mesmo o sol sorrindo, ou a chuva caindo, esteja calor ou frio, nada se altera, assim se esgotam as semanas, meses e as estações do ano. Nesse correr da vida, as pessoas passam, as conversas não distraem, as presenças tornam-se inócuas, não me trazem a frescura do teu abraço, o cheiro de ti, a presença do teu corpo, a doçura dos teus beijos. Faltam-me os teus gracejos refinados pela ironia, e as falas certas com que me rebatias as ideias e propostas, procurando ir mais fundo adentrado em nós. É uma saudade tamanha, da qual me apego em silêncio, como se fosse o ar necessário para respirar. Fico de olhar preso, naquele longe sem horizonte, como se a resposta fosse possível vinda do infinito, inconsciente de que as coisas têm o seu fim e a morte é inevitável.

 

dc


domingo, 28 de junho de 2020

Nada como agradecer


Não sinto o aniversário como uma datação do corpo, antes como glorificação de vida.
A todos os que se lembraram o meu eterno agradecimento;
A todos os que se esqueceram (como eu me esqueço muitas vezes) o meu perdão porque não lhes sinto maldade;
A todos os que ignoraram um abraço de agradecimento, são eles que me ajudam a perceber quão importantes são todos os outros.
Afinal todos têm um espaço no desenho que estrutura a minha vida.
DCC

PS: este texto foi publicado em 1917, mantém-se o seu conteúdo, para todo o sempre


terça-feira, 23 de junho de 2020

A espera é longa


A espera é longa a indecisão nela vem colada torna a razão desequilibrada e a espera acentuada.

Esperar significando tempo, faz a esperança de realizar perder-se do sentimento.


Não quero esperar nem dando tempo, nem esperar de esperançar, perde-se até o momento de recomeçar.

Esperei como sempre espero, já não sei, para ser sincero, se é porque quero, ou por não saber o que espero.

dc


quinta-feira, 18 de junho de 2020

Sou a sombra do que nunca fui.

A frase, saiu sem pensar, ganhou expressão por si só. O clima está incerto, faz sol, ou chove, há vento, ou uma ligeira brisa, o calor é imenso, no virar da esquina o frio segue. Tudo muda na incerteza dos minutos, dos gostos e desgostos, da mente perturbada, congelada, que não pensa, são os dedos por si sós que se movem, ganham vida própria. Serão comandados pelo subconsciente? Responderão directamente ao coração, ou não querem saber de nada disso? Confuso? Não sei, os dedos continuam carregando nas teclas, umas vezes depressa outras devagar, sempre marcando letras que fazem as palavras, os raciocínios e continuo sem pensar da razão do acontecer. Como aquele beijo que damos sem pensar, o abraço que damos sem explicar, o restar em vez de partir, a respiração que funciona mesmo sem pensar.
As palavras na sua suavidade, ou intensidade, por vezes surgem à frente, saem da boca e abstraem-se da pessoa que as solta, tantas vezes tem doçura e mel, outras tantas vinagre e sal, em ambas as situações são tempero de vivências, são reflexos de personalidade expressando de que massa somos feitos. Lá chegarão as alturas, em que será necessário, escolher as palavras com cuidado, com a precisão necessária, em razão do momento. Até lá deixarei que elas sejam livres e se façam sentir. Que as leia quem quiser, como quiser, e como eu, não pense demasiado na sua adequação. Sirvam-se delas gozem a sua sonoridade, fiquem-se pelo gozo da repetição ao serem pronunciadas, fiquem com as que gostam no vosso acerbo, e disparatem insultando quem acaba de se pronunciar, escrevendo tudo isto.

dc


quinta-feira, 4 de junho de 2020

Imagem insólita


O som peculiar alerta-me. A mensagem chegou na forma de imagem, trazendo largura ao pensamento, profundidade aos sentimentos, a dúbia tristeza perante a incapacidade de formular a pergunta certa, perante o espanto da novidade. Algumas palavras surgem num curto espaço de tempo e nelas se dividem as formalidades, escondendo a natureza mais profunda do que na realidade cada um pensa, ou sente. O significado do que motivou a acção e a interpretação da mesma, dificultam a franqueza das palavras, o medo de revelar as emoções, por precipitação do juízo de valor. Tão inesperado acontecimento, alterou o comum corrido das noites, e se transportou para o sonho, num fluido rio de fantasias, com direcção à foz para diluir os eus, na largura do mar e na ondulação das marés.
Apurar razões do acontecido, não faz sentido. Melhor será valorar o facto, pela oportunidade de rever nos traços da imagem, o lugar onde outrora dedos e lábios tocaram, juntando-lhes os sentimentos ainda latentes na memória. Ficar-se pelo prazer daqueles tempos em que tudo fazia sentido. As palavras e as pessoas marcam um momento, que nunca mais se repete. Apaga-se, ou renasce, em outro patamar fora do contexto do que lhe deu origem.


dc

domingo, 31 de maio de 2020

Erro de destinatário


A crueza da verdade chegou na mensagem. Engano no destinatário? Talvez. Um lapso de tempo, em que a memória nos atraiçoa e traz da escuridão à luz do dia, o verdadeiro sentir que o tempo escondia, debaixo das suas desculpas desarticuladas, confundindo as distâncias, vivendo num possível imaginário portal entre dois mundos. A frase era o reflexo do seu viver delirante, entre o experienciar da novidade e a rotina dos dias desse alguém que a habitava.
Ele, agora se apercebia, da razão daqueles sorrisos que nasciam e morriam de modo estranho, do olhar triste transcorrendo para além do espaço físico, como se dentro de si, de repente, a saudade batesse e lhe sufocasse o peito, afastando-a de quem a rodeava. Era evidente que procurava alongar-se no horizonte, para que nem o tacto, nem os cheiros traíssem a sua vontade de permanecer naquele lugar, mas mantendo o sentimento que lhe provocava a saudade. Como aparas sobejantes do limar das frases, ficavam os restos de um diálogo inacabado de palavras, cujo significado se perdia no labirinto das interrogações e perguntas que nunca chegaram a ser articuladas.
O tempo não se recupera, dar tempo não faz sentido. O apego é um sentimento doloroso, uma abnegação doentia do eu, em benefício, duma imitação barata de amor.  

dc